Não sei você, mas eu já comprei meu ingresso pra ver a turnê de despedida do Gilberto Gil, que passa por várias cidades em 2025.
Turnê de despedida. Doido, né? E lindo também.
Acho de uma clareza desmedida quem aceita as finitudes assim, com naturalidade. Não que deva ser fácil (imagino eu - só me resta conjecturar). Mas deve ser sereno também. Pensar que sua missão de vida está bem encaminhada, já é hora de abraçar o descanso.
Pra muita gente, isso incomoda, porque lembra morte e morrer é feio, antiestético, demodê. Mas despedida de uma vida pública, a meu ver, é tipo a aposentadoria do cidadão anônimo. Que pode significar morte, mas também pode ser o começo de uma nova vida, aquele que muitos de nós sonham: jogado no sofá ou na cadeira de praia, fazendo sudoku e se perguntando que horas começa a novela mesmo.
Acho bonito quem vai de lugar em lugar dizendo tchau, como quem se retira de uma festa antes da maioria. Deve ser gostoso ter essa sensação de que muita gente ia ficar triste se você saísse assim, de fininho. “Poxa, queria ter dado tchau pro fulano”. Pois é, ele já foi e você nem sabia que aquela era a saideira.
Milton Nascimento fez isso recentemente e continua aí. Ouviram o disco com a Esperanza Spalding? Tá lindão. Viu só? Recomeço.
Não fui na do Milton, admito, mas vi uns vídeos bem bonitos. Cá entre nós, faço parte do grupo minúsculo de Mineiros Que Não Veneram o Clube da Esquina (MQNVCE), uma entidade sem fins lucrativos cujo único objetivo é se mesclar à paisagem e torcer para que ninguém note. Não é ser hater, tá? Eu, por exemplo, acho que o Milton fez algumas das melhores coisas dos últimos anos com o Mundo Bita - mas o Brasil está pronto pra essa conversa? Eu chuto que não.
O Gil, por outro lado, eu não podia perder. Só o vi ao vivo uma vez, mas valeu por mil. Foi naquela turnê do Concerto de cordas e Máquinas de ritmo, que tinha orquestra e tudo. Maior fineza.
Nesse show, ele canta uma das suas poesias mais lindas, que é Não Tenho Medo da Morte. Peço licença pra colar a letra aqui, que você pode simplesmente ler ou acompanhar com play aqui embaixo. Recomendo fortemente ambas!
Não tenho medo da morte
Mas sim medo de morrer
Qual seria a diferença
Você há de perguntar
É que a morte já é depois
Que eu deixar de respirar
Morrer ainda é aqui
Na vida, no Sol, no ar
Ainda pode haver dor
Ou vontade de mijar
A morte já é depois
Já não haverá ninguém
Como eu aqui agora
Pensando sobre o além
Já não haverá o além
O além já será então
Não terei pé, nem cabeça
Nem figado, nem pulmão
Como poderei ter medo
Se não terei coração?
Não tenho medo da morte
Mas medo de morrer, sim
A morte é depois de mim
Mas quem vai morrer sou eu
O derradeiro ato meu
E eu terei de estar presente
Assim como um presidente
Dando posse ao sucessor
Terei que morrer vivendo
Sabendo que já me vou
Então nesse instante então
Sofrerei quem sabe um choque
Um piripaque, ou um baque
Um calafrio ou um toque
Coisas naturais da vida
Como comer, caminhar
Morrer de morte matada
Morrer de morte morrida
Quem sabe eu sinta saudade
Como em qualquer despedida
Amo o fato de que essa música tem um contraponto, a também linda Não Tenho Medo da Vida, um forrozinho na levada da rabeca que engana pela leveza. Como quase tudo que Gilberto Gil faz, tem um subtexto, uma brincadeira com os sentidos. Essa é diferente da sua irmã mais sombria, em que tudo entrega o peso e a gravidade do assunto. A caixa do violão marca o tempo com pequenos toques de dois dedos, numa espécie de coração externo ao corpo, enquanto a orquestra fica em standby, apenas observando. É muito potente ver esse senhorzinho de cabeça branca olhando a morte na cara, apontando o dedo e dizendo “não tenho medo de você”.
Despedidas anunciadas podem ter um tom agridoce, mas são uma oportunidade preciosa. Fazem os encontros serem mais saboreados e o tempo vivido junto ser mais intenso, sem falar que trazem à tona um monte de lembranças de tudo que foi compartilhado até ali.
Há quem prefira não se despedir de ninguém, e tudo bem também. Eu adoro uma saída à francesa, mas a da Nora Ephron me quebrou. Ela optou por não contar a quase ninguém sobre o câncer, mas escreveu no livro Não Me Lembro de Nada uma crônica que explanava tudo. O título era algo como “Do que sentirei falta”, e então ela procede a listar sua vida inteira: os filhos, o marido, as estações do ano, torta (prioridades, afinal). Foi algo tão inesperado que seu filho, também jornalista, fez um documentário inteiro para entender o motivo de a mãe ter vivido uma vida tão pública e uma morte tão privada.
Talvez Nora não quisesse o chororô das despedidas, o que é compreensível, tá no direito dela. A melhor parte disso tudo é notar que ela não se foi, de fato. Assim como Gil não irá nunca - não enquanto alguém puxar o par pra dançar Esperando na Janela; enquanto alguém der aquele abraço; e enquanto existirem domingos no parque, refazendas e sítios do picapau amarelo.
Mas por ora, celebremos o que temos juntos: o tempo. Afinal, ele é rei.
💭 Imagina mais:
💻 Essa edição da news do
tá sensacional e engraçada, como sempre. Mas faz a gente pensar sobre a transitoriedade dessas coisas que publicamos e consumimos na internet…🌆 Na news do
, meu amigo André Felipe reflete sobre a passagem do tempo na cidade de uma forma muito bonita.🎙️ Saiu um Tiny Desk com o Juanes e eu nunca fui triste!
Texto mais lindo e que saudades desde já do Gil 🤍
Isso aqui é tão lindo: "Acho bonito quem vai de lugar em lugar dizendo tchau, como quem se retira de uma festa antes da maioria".