A menina que soltou os cavalos
Aquele com os amigos que moravam no Village - e não eram os Friends.
Há muitos motivos para amar Só Garotos, o livro de memórias de Patti Smith. A sinopse padrão diria que é sobre o período em que a cantora viveu em Nova Iorque com o fotógrafo Robert Mapplethorpe. Mas um dos motivos, a meu ver, é o desfile de personagens ilustres a cada página, a cada novo capítulo. Patti e Robert se tornam frequentemente coadjuvantes de sua própria história, dividindo o holofote com cada gênio que cruzava seu caminho - e foram muitos.
Patti não foi uma menina de muita sorte no início da vida. Passou boa parte da infância doente e, para escapar de uma existência sem muita perspectiva, foi para a Grande Maçã. Queria ser (era) poeta. Ganhar a vida com palavras, seja vendendo as dos outros como livreira, seja com as suas próprias nos saraus.
Mas Só Garotos é um livro sobre a perda da inocência, sobre as dores de crescimento de quem precisa aprender a andar com as próprias pernas. É o coming of age da vida real. Ele passa longe das narrativas dos filmes protagonizados por adolescentes que vivem o drama da escolha da faculdade; que exploram a própria sexualidade em villas italianas.
No caso de Patti, isso envolveu moradias inóspitas e nem saber se o dinheiro ia dar pra comer. Mas voltar atrás não era uma opção, então ela e Robert logo aprendem que a realidade não é tão simples para quem quer viver de arte.
Mesmo com uma rotina tão dura às vezes, Patti Smith consegue pintar um retrato bem vívido do que era habitar o Village nos anos 70. Da insegurança e sujeira, claro, mas também dos tipos que povoavam aquelas bandas do Washington Square Park. Sem romantizar a escassez, ela cita encontros com Jimi Hendrix, Bob Dylan, Janis Joplin e Allen Ginsberg. Tudo na fila do rango, no CBGB’s, em um estúdio, em lobbies de hotel. Acho que não existia o Central Perk nessa época, mas posso estar enganada.
O que eu mais gosto nem é, necessariamente, o lado glamuroso da coisa - até porque não tinha. Patti mostra como estava todo mundo no mesmo barco, vendendo o almoço para comprar a janta. Ela esbarra com gênios aqui e ali, mas não era sobre isso. Era sobre uma cena que se retroalimentava, produzindo um ecossistema propício pra tudo que aconteceu. Os beats, os hippies, os psicodélicos, os revolucionários que empunhavam guitarras de bandana na cabeça.
Gosto do fato de que era impossível saber no que ia dar aquilo tudo. Não dava pra imaginar que os poemas iam virar apresentações com banda e logo levariam ao álbum “Horses” - aquele em que Patti Smith inventou o punk. Não dava pra saber que Ginsberg ia entrar pra história com seu próprio “Uivo”, para além de ser amigo daquele escritor que pegou a estrada. Que Dylan viria a ser o trovador do século. Que Mapplethope se tornaria um fotógrafo chave no movimento queer, na estética da sexualidade na fotografia.
Eram só garotos, tentando sobreviver ao fim do mês, à doença, à guerra do Vietnã. Sem saber quem ia continuar ali quando tudo fosse dito e feito - as músicas, os poemas, as exposições de fotos. Gosto da casualidade disso tudo. Um dia você sai de casa, o Allen Ginsberg te paga um sanduba, vida que segue.
Um dia, fui ao Washington Square Park. Fazia um frio daqueles que enganam. Os termômetros diziam 3 graus, o vento dizia outra coisa. Eu usava luvas de esqui e a brisa entrava por cada fibra do material, de sorte que decidi aceitar os dedos mais rígidos. Era só um dia no Greenwhich Village, afinal, num daqueles horários ingratos em que pouco acontece e as cadeiras dos cafés na MacDougal Street estavam de pernas para o ar.
Passamos pela NYU e encontramos, logo perto do arco que marca a entrada da praça, uma homenagem às vítimas do Bataclan com cartazes, velas e flores. Era a tragédia da semana. Os tributos eram poucos e pouco expressivos, restos de uma vigília de dias antes, porém se destacavam com certa facilidade no cenário cinza. Alunos de cinema filmavam esse visual improvável. Eu e
ali, dois brasileiros que caíram de paraquedas em um altar que não nos pertencia, viramos personagens de documentário. Uma daquelas coisas que acontecem quando se está no Village: o inesperado.Nunca vi o documentário, a Academia nunca me convidou para ser membro. O que ficou desse dia foi a liberdade de flanar por esquinas onde hoje existem clubes de comédia, restaurantes, bares com música ao vivo e open mics diversos. Shows de mágica e saraus se encontram ali, no off-off-off Broadway, naquelas escadinhas que levam, para abaixo do nível do solo, quem decide se aventurar.
O Bob Dylan não estava lá. Ginsberg, Joplin, Mapplethorpe e Hendrix já partiram. Mas, de certa forma, estão e sempre estarão. Povoando aquelas ruas numeradas, cantando e declamando sobre o dia em que a menina Patrícia soltou os cavalos e a vila nunca mais foi a mesma. Glória!
💭 Imagina mais:
📘 Acabei de ler “Escrevendo com a alma: Liberte o escritor que há em você”, de Natalie Goldberg. O título não ajuda, parece só um manual superficial, mas não é. Ok, é bem autoajuda, mas são pequenas crônicas, ensaios sobre o processo de escrita e como cultivar esse hábito faz de nós pessoas mais conscientes. A autora coloca aqui muitas coisas que serviram pra mim como uma carapuça! Recomendo pra quem se sente travada nesse processo de fazer da escrita uma prática recorrente na vida.
🎙️ Publiquei uma entrevista com o Take That e acho que a Nathália de 11 anos ficaria muito orgulhosa.
📺 Quem gosta do clima dos inferninhos do Greenwhich Village precisa ver The Marvelous Mrs. Maisel, que se inspira no auge do Gaslight e o Café Wha para contar a história de uma menina que teve uma vida com menos escassez que a Patti, talvez porque ela não existiu de fato. Mas ainda assim, não perco a chance de indicar essa série. Aquele filme dos Coen também é legal, vai. Por fim, pra quem quer pegar a estrada com essa trupe em um clima de circo mambembe, ficará muito bem servido com o documentário Rolling Thunder Revue: A Bob Dylan Story by Martin Scorsese - um título bastante autoexplicativo. O foco era essa turnê do Dylan que tem personagens marcantes. Entre uma Joni Mitchell e uma Joan Baez, aparece de relance uma certa Patti Smith no meio daquela turma toda. O que eu não daria pra ser uma mosquinha…
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Taí um livro que amei ler, desses que deixam a memória dos dias em que li junto com a memória do livro em si! Adorei relembrar pelo teu texto, Nathália!
Ai que texto bom de ler, Nathália! O único problema foi ter que adicionar mais um livro para a lista de leituras que já anda bem volumosa! hehe