Quando eu penso em Nick Cave, eu penso em Into My Arms, em The Weeping Song. Penso até no Fluminense. Mas não penso em alegria. Não é pra menos - o cara é famoso por ter aquela voz grave e pelas canções sombrias que escreve.
Pelo visto, nem o Nick Cave pensa muito em alegria, o que o levou a pedir aos leitores da sua newsletter que enviassem respostas para uma pergunta aparentemente simples: onde e como você encontra alegria?
Digo aparentemente porque os fãs de Nick Cave levaram a tarefa muito a sério, como você pode imaginar. Mais de 2 mil respostas chegaram e, aos poucos, foram selecionando as melhores para catalogar em uma página separada. O título não poderia ser outro: Joy. Lá, já tem 500 delas.
Desde que a página foi ao ar, me pego voltando nela múltiplas vezes. Em tempos de economia da atenção, são pouquíssimas as coisas que valem o retorno - aqueles livros que relemos, discos que reouvimos estão cada vez mais raros aí também?
Mas as respostas dos leitores me pegaram de um jeito que não imaginava. Não me incluo na lista de assinantes da newsletter, apesar de achar ótima, apenas porque não há tempo suficiente na vida. Mas meu marido, que lê e ouve tudo que o Nick Cave põe no mundo, me encaminhou essa edição, imaginando que ia ressoar comigo. Acertou.
O acervo de respostas varia bastante. Há um curto e direto “golf”, logo no início, que desarma pela simplicidade. Há ainda dicas de autoajuda que poderiam virar seu próprio post de blog. Muitos, muitos desabafos. E, claro, histórias pessoais aos montes.
Decidi reunir aqui algumas das melhores entre as poucas que li.
[...] Não acho que eu encontro a Alegria, mas que a Alegria me encontra. [...] Ao fazer música (bastante mal no meu caso), sou frequentemente sequestrado pela Alegria. Mas então, algumas semanas atrás, me vi com todos os meus quatro netos, todos com menos de seis anos, amontoados no meu colo. A Alegria que senti transcendeu quase tudo que já experimentei antes. Apesar de ter sido criado por católicos, casado com uma católica e ter dois filhos católicos, evitei quase toda religião organizada, mas naquele momento senti algo tão espiritual e tão fora deste mundo que é impossível colocar em palavras. Mais Alegria do que um velho colo poderia conter. Bob (Reino Unido)
Acho que encontro alegria apesar da autoridade, apesar da hipocrisia, apesar do sofrimento. Uma espécie de atitude desafiadora e questionadora em relação ao mundo, como se eu estivesse sempre convidando-o a me mostrar o que está por baixo de tudo, o bom e o ruim. Talvez não seja a forma mais pura, mas é a minha. Parece pessoal e libertador. Uma forma de resistência, como o Idles diria. Lorenzo (França)
Eu encontro alegria na impermanência de tudo. David (EUA)
De fato, a alegria pode ser uma decisão, mas às vezes também é a decisão de não procurá-la. Mas a alegria nem sempre conhece o caminho. Certifique-se de que ela pode encontrá-lo! Inge (Holanda)
Sou filha, irmã, mãe, sobrinha, tia, esposa e amiga. Sou cientista, jardineira, nadadora, voluntária política, violoncelista amadora, organizadora de encontros musicais, membro de uma animada estação de música digital, escritora de cartas, leitora, humanista e uma introvertida muito sociável. Todas essas coisas me trazem realização, satisfação e diversão em muitas dimensões. Mas alegria? Alegria cem por cento garantida e descomplicada? Sente-me em um pônei cavalgando ao ar livre no campo - elementar, rejuvenescedora e eternamente alegre. Rachel (Reino Unido)
A inspiração é meu estado de ser mais alegre. Quando estou inspirado, sinto pura alegria. O momento de inspiração parece uma lembrança de algo que ainda não aconteceu. Uma imagem, um riff, uma música, uma ideia, uma conexão se desenrola na minha cabeça. Parece tão familiar, como se eu já soubesse disso o tempo todo, e ainda assim tão estranho, pois estou vivenciando isso pela primeira vez. Se eu sondar esse sentimento um pouco mais profundamente, ele é sedutor e alimenta uma sensação de admiração e verdadeiro pertencimento. Tenho repetido uma frase/mantra este ano, “você pertence”, que me ajuda a me aterrar no momento presente, aqui e agora. A forma longa da frase é: “quando você pertence ao universo, o universo pertence a você”. Luke (EUA)
Há muitas outras - mas nenhuma contribuição do Brasil até o momento. Me lembrei logo daquele ranking que lista os países por nível de satisfação da população e que tem a coragem de se denominar Relatório Mundial da Felicidade. O que eles estão medindo ali, claro, são características mensuráveis. Números, trocando em miúdos - renda, saúde, programas sociais, liberdade, segurança e ausência de corrupção, por exemplo. Caso queira saber, a Finlândia foi eleita de novo a nação mais feliz do mundo, tá de parabéns.
Mas me peguei pensando que nenhum desses marcadores sociais estão presentes no que os leitores da The Red Hand Files compartilharam. Afinal, alegria e felicidade não são necessariamente a mesma coisa. Eles citam atividades criativas, entes queridos, passeios ao ar livre. Não vou fingir costume. Claro que só dá pra cavalgar de pônei se você não tem medo de ser pega no meio de um tiroteio e ainda ser assaltada, com os caras levando seu pônei embora.
Ainda assim, essas fontes de alegria me encheram de esperança. Sim, tá todo mundo com o cérebro frito de burnout, vendendo o almoço pra comprar a janta, passando por desigualdades. Mas ouso dizer que até no Brasil existe alegria nesses pequenos momentos, que ajudam a suportar todo o resto.
Ando obcecada com A Noviça Rebelde depois de na mesma semana ver o filme e o musical aqui no Rio. My Favorite Things é uma das músicas que estão morando na minha cabeça há dias sem pagar aluguel.
A lista de coisas favoritas da freira postulante interpretada por Julie Andrews é longa, com muitas imagens que remetem ao inverno no hemisfério norte, incluindo chaleiras, luvas quentes, sinos de trenó, gatinhos e flocos de neve - quase todos itens que já dão um suador só de pensar neste Brasil pós-tropical e pré-apocalíptico.
Mas o suprassumo da coisa toda é simples: em meio às tempestades, vale buscar esse “lugar feliz” que todo mundo tem, seja nas montanhas da Áustria, seja por aqui. Mas a freira alegre incomoda, tanto que no início da história as tias do convento ficam se perguntando “o que faremos com Maria?”. Sua rebeldia, tão alardeada, consiste em quebrar regras como cantar por aí e ficar passeando com um violão embaixo do braço.
Ser alegre é tão fora do script que a gente raramente sabe lidar com alguém que foi picado pelo bichinho da alegria. Criança brincando é o tipo de coisa que sempre atrai um olhar torto, do tipo “onde estão os pais desses diabinhos?”
A alegria, que parece tão natural quando somos pequenos, vai se tornando quase um ato de resistência conforme envelhecemos. Divertida Mente 2 está aí para provar (fonte científica, a gente vê por aqui!) como as emoções vão ficando mais complexas, e a alegria muitas vezes cede espaço para responsabilidades e pressões da vida adulta.
O que antes era espontâneo e bem-vindo, como brincar ou cantar sem pudores, passa a ser visto com estranheza, como se houvesse uma regra tácita de que a vida adulta exige mais seriedade. O sorriso fácil vai ficando raro, e o espaço para a leveza parece encolher.
Logo, a gente entra na linha dura do Capitão Von Trapp e se põe a marchar, marchar, marchar.
Tudo isso me inspirou a deixar aqui a minha própria listinha de onde encontro a alegria, sem ordem de preferência. É uma coleção de pequenos prazeres que cabem na minha existência e talvez passem coisas boas para você também.
Aos domingos pela manhã, fazer um café moído na hora, pegar meu livro e me aninhar no sofá, sabendo que a casa estará silenciosa por pelo menos uma horinha.
Ouvir uma música muito boa.
O primeiro abraço na minha filha de manhã.
O momento em que meu marido chega na cama, sempre depois de mim, e se aninha no meu corpo.
Morder uma maçã muito crocante.
Aprender algo novo - é como despertar o meu cérebro.
Desenhar letras e fazer lettering.
Cochilo na rede (sem pernilongos).
Receber elogios por algo que escrevi.
Gol do meu time.
Fim do treino.
Aquarela.
Doce de leite.
Não ter planos.
O barulhinho da rolha saindo da garrafa de vinho.
Tirar o sapato no fim do dia.
Entrar no cinema com um balde de pipoca.
Jogos de tabuleiro e quebra-cabeças.
Fazer as malas para uma viagem.
Chocolate.
Cheiro de terra molhada.
Zero novas mensagens no WhatsApp.
Conhecer alguém que admiro.
Rever um amigo depois de muito tempo.
Receber uma carta.
Passar na catraca para entrar num show que estava aguardando há muito tempo.
Descobrir uma banda nova, um escritor diferente, e a sensação que vem de antes e depois: por onde você andava a minha vida toda?
Revisitar fotos.
Quando alguém faz café pra mim.
Descascar tangerina, quando as micropartículas ácidas flutuam no ar e fazem cócegas nas nossas narinas.
A primeira garfada de um cheesecake.
Te convido a fazer o mesmo nos comentários ou respondendo o e-mail. Certamente servirão de mapas onde eu e outros leitores poderão encontrar seus próprios refúgios em meio ao caos.
A alegria existe. Encontrá-la diariamente é um ato de resistência.
Resistamos.
💭 Imagina mais:
🧳 O
também se inspirou por Nick Cave, mas de outro jeito, como só a sabe fazer.♂️ Meu amigo André Felipe, da newsletter
, me indicou uma série espanhola pra dar uma força no meu aprendizado do idioma. Foi Machos Alfa, uma produção da Netflix que tinha me afastado pelo título, admito. Acabou se provando uma boa comédia, daquelas de meia hora completamente despretensiosas. Só que aí do nada você ela te pega de surpresa com algum nonsense e te faz pensar: ah, como é bom ser bobo. A vida não precisa ser tão séria!🎸 Me peguei apaixonada pela série documental Quebra Tudo: A História do Rock na América Latina, também da Netflix. Eu já conhecia por alto alguns, outros era fãzoca, mas foi bom colocar um contexto político e social na coisa toda. Tem uma ótima playlist com as canções citadas. Mas que faltou falar de Brasil, isso faltou.
Até a próxima! ✨
Minha lista começa justamente com:
- Risadas que te pegam de surpresa vendo uma comédia;
- Escutar novamente uma música que você ama, mas tinha esquecido que existia;
- Meu cachorro pedindo pra brincar;
- Observar gente sorrindo em um museu;
- Ver crianças inventando qualquer brincadeira em um lugar aleatório;
- Chorar de rir;
- Café bom;
- Comida boa;
- Roupa de cama limpinha;
- Aprender uma nova informação que cai como uma pecinha que faltava de um quebra cabeças que você não sabia que estava montando;
- Ver que uma pessoa gostou genuinamente de um presente;
- Acordar e perceber que ainda posso dormir mais.
O primeiro abraço do meu filho de manhã.
Café, caneta e papel.
Domingos chuvosos.
❤️
Delícia de texto! 👏🏼😊