“Olha a chuva!” e “É mentira!” são duas das frases mais felizes da língua portuguesa. São brincantes, carregam cheiro de milho verde e gosto de paçoca. Que outras combinações de palavras fazem isso por você?
Há quem diga que a festa mais brasileira e democrática que existe é o Carnaval, e eu concordaria - apenas se não conhecesse o São João. Não me leve a mal: não sou de folia, mas reconheço a importância que ela tem. Embora os festejos do Rei Momo já tenham ficado gourmetizados há tempos (vai ver preço de camarote), o samba continua vivo em todas as biroscas - pelo menos aqui no Rio de Janeiro.
Assim como o Carnaval, a festa junina e julina tem uma versão diferente em cada região do país. Mas, diferentemente, acontece ao longo de dois meses, pelo menos. Evoca nostalgia, pé não chão e vida simples (mas vai ver o preço dos vestidos de chita). É um festejo calcado na dança e na comida, na música e nas brincadeiras. É a única época do ano em que a maioria dos brasileiros costuma ter orgulho da influência do nordeste, das suas histórias e lendas, tons e sons.
É uma festa tão bem quista que até as igrejas abrem suas portas. As beatas põem fita no cabelo e São João e Santo Antônio sopram aquele ventinho frio lá de cima - a desculpa perfeita pra acender a fogueira.
Minhas lembranças de festas juninas são... diferentes. Na minha infância, lá no interior de Minas Gerais, os únicos arraiás que frequentava eram os da escola, onde minha mãe era a diretora. Não só era a primeira a chegar, como a última a sair. Eu estava lá na confecção das bandeirinhas, na montagem das barracas, na pintura dos cartazes de preços, pedindo prendas no comércio para abastecer a pescaria. Vai comprar alguma coisa pra festa? Então lá vai a Nathália acompanhar os três orçamentos para definir de qual loja viria o pedido. Eu até gostava, entendia meu papel de filha: ficar quietinha e, se não pudesse ajudar, não atrapalhar.
Na hora da dança, eu assistia das laterais. Podia até ensaiar com a turma, mas minha mãe não gostava que eu dançasse na festa de São João - afinal, éramos evangélicas. Então qualquer interesse, vontade, desejo de mexer o meu corpo morreu ali. Também não usava as roupas típicas dessas festas, para não ser confundida com alguém que participa de quadrilhas. Se ela soubesse que alguns anos depois descobriria até pastores envolvidos em quadrilhas, talvez não tivesse sido tão rígida!
Por isso, quando meu avô puxou o fole da sanfona, eu me emocionei. Seu Zé Pandeló era um sanfoneiro autodidata que na adolescência já tocava nos bailes na roça. Com o chapéu na cabeça, chegava facilmente à marca dos dois metros de altura, uma notoriedade inevitável se somada à sua barriga proeminente.
Meu avô também se converteu, de modo que não frequentava bailes havia tempos. Mas mantinha suas sanfonas intactas - pelo menos uma de 12 e uma de 20 baixos - para quando dava vontade de tocar. E ela vinha com certa frequência, então o Seu Pandeló se colocava na porta de casa, vestia a sanfona como quem coloca uma roupa de gala, abria a tira de couro que segurava as duas metades do instrumento e puxava o primeiro acorde. Ele não sabia todas as letras, mas cantarolava as melodias. Não raro, parava alguma senhora ou aposentado para apreciar, puxar uma conversa. Não tenho a menor dúvida: ali era o seu lugar mais feliz. O da música.
Não me lembro a razão, causa ou circunstância que levou a esse convite para que ele tocasse logo na festa junina da escola, onde tudo não podia, era feio ou pegava mal. Mas lá estava ele, sentadinho no seu banquinho, tocando umas 50 notas por segundo e colocando a criançada pra dançar. Nem lembro se tinha banda acompanhando, até onde sei meu velho estava solando. Estava vidrada nele e naquele momento histórico (na minha cabeça, pelo menos). Olhei para os dois lados, e disso me lembro claramente: das pessoas aplaudindo e sorrindo. E eu sorria de volta, como quem dizia: tá vendo aquele moço? É o meu avô.
Como não tinha muita criança na minha família, passei um bom tempo sem ter a “justificativa” apropriada para comparecer a uma festa junina, sequer ficava sabendo onde ou que dia aconteciam. Até que eu mesma tive uma criança. Corta pra primeira reunião de pais na escolinha, a diretora abre para perguntas. Eu levanto a mão: “vai ver festa junina esse ano?”. Era um mundo recém-pós-pandêmico, daí a dúvida. “Vai”.
Flora pegou o vestido emprestado da coleguinha de turma que ofereceu. Teve dança e ela tentou acompanhar, do jeitinho que suas perninhas de dois anos permitiam. Nascia uma apaixonada por festas diante dos nossos olhos. Pouco mais de um ano depois, Florinha estava no palco de um teatro lotado por umas 700 pessoas e roubou a cena na apresentação de balé. Parte de mim se sentiu curada ali, de tudo que não vivi, daquilo que me foi negado.
Nada disso me tirou a paixão por essa época do ano, por esse momento em que a cultura sertaneja e caipira brilha nos palcos e nos amplificadores do Brasil afora. Como alguém que cresceu no contexto dos xotes e das modas de viola, sinto que há muito de mim ali, mesmo sem ter conhecido essa vida na roça. Muito se pode discutir sobre a apropriação e a desvalorização dessa arte fora das épocas festivas, ou mesmo das caricaturas feitas aos montes por aí, em tom jocoso. Não vou nem começar no assunto do casamento entre crianças pra não me alongar! Mas não me abato. Foco no positivo, no tanto que essas festas servem como uma ponte para as nossas infâncias e raízes. Afinal, nóis trupica mas num cai.
Aquelas quadrilhas que não dancei ainda pesam, mas inevitavelmente fazem parte de quem sou. Eu as vivi de outra forma, assim como hoje as experiencio de outro ângulo. Estou no círculo de pais aplaudindo, filmando e vibrando. E até achei um par, que me puxa pra dançar - tão desengonçado quanto eu - o “Xote da Alegria”. A vida pode ser boa, o ano todo.
💭 Imagina mais:
A cobertura do
para as Olimpíadas está diferente de tudo que você vê por aí. A propõe crônicas do jeito que a nação substacker gosta. Uma forma nova de olhar o óbvio é sempre bem vinda, e o Matheus faz isso muito bem.Ando lendo minhas newsletters com certo atraso. Essa aqui, da
, só agora me bateu. Dialoga um pouco com o que falei sobre memórias resgatadas, mas de um jeito belo (e sombrio) do jeito que só ela sabe fazer.Obrigada por ler até aqui ✨
Minha lembrança de festas juninas estão marcadas no coração pelas longínquas festas que minha família fazia no final de junho, estimuladas pelo meu avô, que as fazia para celebrar a compra da casa própria que demoraram tantos anos pra conseguir pagar. Ainda que elas estejam em um passado bem distante (já que minha família não continuou por tanto tempo depois de sua partida), é impossível não amar esse período e, ao mesmo tempo, lamentar por estarmos em tempos de destruição de costumes tão brasileiros graças a uma fé que demoniza o diferente.
adoro festa junina. um dia ainda vou pro nordeste nessa época do ano!