Venho acompanhando, com otimismo comedido, a descoberta dos meus compatriotas brasileiros de que, pasmem: integramos a América Latina. É uma ficha que cai lentamente, admito. Começa com um Despacito aqui, uma música na novela ali, uma turnê da Shakira acolá e… Dale! Temos Bad Bunny com estádio esgotado no “país da barreira linguística”. Quem te viu, quem te vê, Brasil.
É bem verdade que o brasileiro médio não está pronto para levantar a bandeira regional e nem tatuar a América invertida. A pouca conexão que a cultura mainstream tinha com conteúdo feito em espanhol foi aos poucos se perdendo, com as novelas mexicanas dando lugar às turcas e doramas; com Chaves e Chiquititas sendo substituídos por Bluey e Patrulha Canina. São fases, afinal.
Ainda assim, há uma questão estrutural: o brasileiro, em geral, não se reconhece como latino-americano. A barreira linguística, sempre apontada como principal explicação, se tornou uma espécie de falácia confortável, que reforça a ideia de distância onde há proximidade. Ignora-se que o português falado no Brasil é, de fato, mais próximo do espanhol do que se faz crer, e que a identidade latino-americana não é definida apenas pelo idioma, mas por histórias de resistência e afetos partilhados. Esse distanciamento simbólico nos foi inculcado e reforçado por um ideal de “exceção” que nos afasta dos nossos vizinhos e nos aproxima de imaginários europeus ou norte-americanos. Haja síndrome do vira-lata.
Mas é inegável que há um movimento diferente acontecendo. O reggaeton come pelas beiradas no mercado nacional, conseguindo entradas cada vez maiores graças a parcerias com artistas locais. Anitta escancarou as portas para J Balvin; Karol G se aliou às potências Dennis e Kevin o Chris antes de cantar em português no seu próprio disco; Emília colou em Luísa Sonza. Não é camaradagem, é estratégia: estamos falando do nono mercado musical do mundo.
Nada se compara, porém, à catarse coletiva motivada por DeBÍ TiRAR MáS FOToS, o sexto álbum de Bad Bunny. Se o seu feed do Instagram for remotamente parecido com o meu, não há necessidade de explicar (mas se não for, escrevi uma matéria que pode ajudar a elucidar). Não é mistério algum que sou fã de Benito desde antes do primeiro disco, e está ainda mais claro que essa é a obra-prima da sua carreira. Mas essa não é a única explicação para o sucesso (ainda que moderado) de um disco em espanhol no Brasil.
O motivo são as cadeiras. Os assentos plásticos e completamente genéricos que estampam a capa de DTMF são símbolos de familiaridade, uma conexão genuína entre povos abaixo do muro divisivo de Donald Trump. A partir dali, o calor, a cor, o sabor e a dor nos unem. Cada um com a sua história e identidade, claro, mas com uma bagagem que se intersecciona em pontos difíceis de ignorar. A comida, a música, as estruturas familiares e religiosas vêm das mesmas raízes – mas estas, não por acaso, vêm do colonialismo, da exploração, do racismo, do genocídio. A cereja no bolo? O totalitarismo.
Si preguntan quién soy, qué llevo, a dónde voy
Soy de tierra santa
Soy de donde nací, donde voy a morir
Mi tierra santa
A América Latina, dizem, não é para amadores ou principiantes. Há muita verdade nisso e os brasileiros vêm aos poucos percebendo essa similaridade entre lá e cá. Graças, em parte, às fronteiras mais fluidas que o Mercosul possibilitou e a ampliação da classe média solidificou. Já faz um tempo que faz mais sentido financeiramente passar férias em Buenos Aires que no próprio Brasil, um território de dimensões continentais que não perdoa sequer os seus. Vai ver o preço de um vôo pra uma cidade na região oposta à que você mora. Eu espero.
Preferimos, então, trocar os reais pelo peso de algum vizinho de fronteira; o português pelo portunhol; o axé pelo tango; o gurjão a beira-mar pela parrilla na terra. Quem mora mais a oeste já está habituado a fazer mercado e abastecer o carro do outro lado da borda.
Diluímos as fronteiras também ao norte, quando os venezuelanos passaram a migrar em grandes ondas. Se antes o brasileiro ainda fazia careta pro guacamole, agora é mais comum abrir o iFood e dar de cara com arepas, cachapas e tamales – pelo menos nos grandes centros. E, pra mostrar que o jogo também vira, o real ficou desvalorizado perante o peso e a turma do Messi até ganhou uma Copa do Mundo.
Quem olha, até me acha versada nas similaridades que temos com os hermanos. A verdade é que meu chá de revelação de latinidade começou há só uma década. Tive a ideia de fazer um aniversário mexicano, movida apenas pelo meu amor ao chili con carne. Fui montar uma playlist pra receber os amigos e acabei desembocando em seleções de “maiores hits do reggaeton”. A sensação é que nunca mais saí, apenas fui mais a fundo. Eu só tinha um conhecimento de Jorge Drexler, meu portunhol e um sonho: deixar de ser ignorante sobre quem divide o continente conosco.
Dez anos depois, posso dizer que só arranhei o topo do iceberg, ou a beiradinha do sombrero. Pra alguém cuja noção de música estrangeira era apenas em inglês, nada me veio de mão beijada. Charly García, Célia Cruz, Willie Colón? Tudo parece muito óbvio pra quem já é mais habitué das cenas latinas, mas não é tão simples quando tudo que você conhece sobre o assunto envolve os versos “dame más gasolina” e “estoy aqui queriéndote”.
Hoje, me sinto mais integrada aos nossos vizinhos de porta. Em grande parte graças à música, séries e filmes que vêm me acompanhando nos últimos anos; outra, devo à minha professora colombiana de espanhol e sua paciência infinita. Mas sempre senti que essa era uma jornada pessoal, de uma menina cujas raízes portuguesas e fenótipo mais claro não apagam as origens profundas que só quem é dessa terra conhece e entende.
Agora, observo com algum espanto (e também alívio) minha filha cantar “Debí tirar más fotos”, pedir “Alexa, toque Caloncho” com a mesma naturalidade com que ouve Palavra Cantada, e escolher uma pinhata para o aniversário com o tema Encanto. Mesmo se tratando de produtos massivos, como um filme da Disney, isso revela algo importante: para as próximas gerações, a pluralidade de vozes latinas já é parte do cenário. Há um novo tipo de normalidade em curso, uma em que essa parte privilegiada do mundo, longe dos códigos nucleares de líderes insanos, pode seguir sendo um dos poucos refúgios de beleza, diversidade e afeto.
Aquí se respira lucha
Yo canto porque se escucha
Oh, sí, sí, eso
Aquí estamos de pie
¡Qué viva la América!
Não me deixo levar pelo otimismo. É preciso mais que conhecer o merengue de Juan Luís Guerra, o rock de Café Tacvba, a salsa de Rubén Blades, o pop andino de Mon Laferte, o rap contestador de Residente, o cancioneiro folclórico de Natalia Lafourcade, o bolero moderno de Silvana Estrada, a cumbia digital de Bomba Estéreo, o trap de Duki, o experimentalismo caribenho de iLe e a polifonia inclassificável de Ca7riel & Paco Amoroso, afinal.
É necessário muito mais que ler García Márquez, Cortázar, Bolaño, Villalobos, Zambra, Allende, Ocampo. E certamente vai muito além de tomar Pitorro de coco, rum, pisco, tequila. Do lado de cá de quem já vem tentando cruzar a fronteira, posso dizer: é lindo ser latino. Abraçar essa riqueza é mais que tendência lucrativa. É uma grande de uma delícia, e cada vez mais compartilhada. Ainda bem. Bienvenidos.
💭 Imagina mais:
Minha playlist pessoal de descobertas latinas - coisas não-óbvias (pra mim, pelo menos), pra não perder de vista.
Aceito dicas que vocês também consideram imperdíveis. Livros, filmes, séries, discos, podcasts, vale tudo. E caso queira alguma minha também, tô aqui pra compartilhar!
Esse texto me lembrou muito (não por acaso) dos sketchs do Bad Bunny com o Pedro Pascal no SNL <3
Que textao lindo, Nat! Encantada! 🧚