Tenho as mãos quentes. É o que digo quando acho que a massa do pão vai desandar. Mas existem técnicas para a sova. Modos testados e aprovados por padeiros, esfirreiros e pizzaiolos do mundo todo. Tenho ciência delas todas, possuo acesso ao YouTube e livros de receitas. Mas quando chega a hora de sovar, nenhuma delas me serve.
Entra em cena a memória afetiva, os momentos gravados da minha tia Vera dobrando a massa para lá e para cá. Puxa, estica, faz a volta por cima de si em movimentos rápidos. Por cinco, dez minutos, seus braços trabalhavam incansavelmente. Por vezes, a mão enfarinhada subia à testa para afastar algum cabelo incômodo e logo voltava ao batente.
Rita Lobo que me desculpe, sovo como minha tia. Talvez coloque ombro demais, eu sei. Acabo cansando mais rápido do que o necessário, mas foi assim que aprendi. Observando. Por vezes demais, fiquei na beira da mesa esperando um golinho do guaraná que ia na massa de pastel. Torcendo pra ser convidada a abrir a massa - uma gira a manivela, a outra segura o tapete liso que saía do outro lado. A hora de pincelar os ovos nas rosquinhas de nata, o momento de cortar o topo das empadinhas, de jogar o açúcar com canela por dentro do pão mais cheiroso do universo.
Isso é memória muscular também. Tia Vera tinha aquele braço de merendeira, sabe? Potente para a labuta da cozinha, delicado para o carinho, o abraço e o aconchego. Minha família tem grandes cozinheiras, presenciei principalmente minha avó e minha mãe fazendo delícias. Mas houve algo de formativo naqueles momentos em que minha tia me deixava participar de sua produção de quitutes e que carrego comigo até hoje.
Não sei porque faço a maioria das coisas que faço ou como cheguei a esse modus operandi. A maioria delas é inerente, segunda natureza. Só quando paro pra pensar é que noto as heranças familiares. Elas estão no “credo em cruz!” que roubei da avó, na oferta de colo a cada conversa séria que preciso ter com a filha, tal qual meu avô. Absurdo achar que eles se foram apenas porque não estão mais fisicamente aqui.
Ponto de não-retorno
Estava ouvindo o novo disco da Lana Del Rey, o programa do indie que não foi ao Lollapalooza nesse fim de semana. Tem uma música de mais de seis minutos que talvez passe despercebida, mas o nome a faz se destacar. Kintsugi referencia a técnica japonesa de reparação de cerâmicas quebradas, utilizando o ouro para remendar as rachaduras.
Desde que o ocidente tomou consciência disso, usa como metáfora para falar sobre como somos todos quebrados, de uma forma ou outra; sobre reconstrução e a beleza possível depois da destruição. E funciona. Porque somos, de fato, uma coleção de cicatrizes, como a Ruth fala na segunda temporada de Hunters.
A música da Lana é sobre as feridas causadas pela perda de entes queridos da sua família. Avó e tios que se foram, alguns dos quais ela nem conseguiu se despedir. É sobre fazer as pazes com esses lutos, com uma referência a Leonard Cohen, que canta em Anthem:
There is a crack, a crack in everything
That’s how the light gets in
Lana começa a música de forma categórica: There's a certain point the body can't come back from. E é a mais pura verdade. A vida é um grande combinado de antes e depois. Impossível permanecer a mesma depois de certas curvas no caminho.
A gente sente no corpo, mesmo. E carrega nele as vitórias e as perdas, os aprendizados e os pauladas. Tudo vira bagagem. E depois vira memória afetiva, muscular, vira pão, mas certamente não termina em pizza.
Quem passou por aqui deixa marcas. Que a gente possa honrá-los, porque é assim que eles permanecem vivos.
Devo dizer que hoje sou uma orgulhosa proprietária de uma batedeira planetária que sova massas para mim. E nem ela faz certo: samba pela bancada toda, alheia às ventosas que eram para segurá-la firme. Às vezes, só o calor da mão para dar textura, para chegar ao ponto.
Talvez não exista um certo ou errado, desde que o resultado fique gostoso.
LINKS DA VEZ
A newsletter do Ted Gioia sempre traz boas análises socioculturais do momento em que estamos. Nesse texto, ele fala sobre porque o scroll das timelines infinitas não vai nos fazer desistir de análises mais profundas.
Quem é fã da Patti Smith precisa assinar a newsletter dela! Patti grava áudios, vídeos, posta fotos de livros como formas de compartilhar poemas que ama, trechos que ela mesma escreveu e analisar algumas de suas canções. Amo ouvi-la lendo escritos alheios, porém o que mais gosto é a oportunidade de mergulhar um pouco mais fundo nas músicas. Nesse post, por exemplo, ela fala sobre como a morte de uma ativista em 2003 a inspirou a escrever a incrível Peaceable Kingdom.
Entrevistas recentes que fiz e acabaram de sair: Gustavo Santaolalla, sobre a trilha de The Last of Us; Sofi Tukker, sobre Lollapalooza; Cut Copy, sobre nova vinda ao Brasil; e Henrique Portugal, do Skank, sobre os últimos shows da carreira.
Amei!