Confiar desconfiando
Eu fui criada já sabendo que não dá pra confiar em ninguém, não falar com estranhos, aquele pacote básico que vem instalado junto com o kit “medo do homem do saco.zip”.
Aí eu ousei desconfiar - logo da Bíblia. Não deu certo. Minha mãe me levou pra conversar com o pastor. Chegando lá, eu perguntei, na cara dura, do auge dos meus 14 anos:
— Mas pastor, e os dinossauros?
Não lembro o que ele disse, não foi convincente. Não que fosse um cara desses avessos à ciência. Ele, mesmo, era bem estudioso, adorava uma aula de grego, não podia ver um livro de aramaico, o louco do latim, esse tipo de coisa.
Fato é que ele não soube explicar a ausência dos dinossauros da Bíblia. Minha mãe, historiadora de formação e cristã por vocação, tampouco. Mas e as ossadas, os fósseis?
— Talvez tenham sido plantados lá por pessoas que querem levantar a desconfiança entre o povo de Deus – ela teve a pachorra de falar.
Tivemos alguns embates assim durante minha adolescência, sem que houvesse perdedor ou vencedor. Não a convenci dos buracos na narrativa e das falhas de roteiro, ela não me convenceu a acreditar sem questionar.
Os anos se passaram, e ouvindo o podcast do Trevor Noah entrevistando a Quinta Brunson, descubro essa experiência compartilhada. Ele passou pela mesma situação com a mãe evangélica na África do Sul; ela, com os pais testemunhas de Jeová na Filadélfia. Tenho certeza que muitos outros chegaram ao mesmo ponto de virada, na mesma aula de ciências.
A mãe do Trevor teve a resposta perfeita. Sem nem titubear, ela disse para o filho:
— Simples: a história da Bíblia é a partir de quando o mundo começou para nós.
— Mas e os dinossauros?
— Uai, eles morreram na chuva de meteoros, nós viemos depois.
Talvez eu esteja parafraseando, pode ser que “uai” não seja muito usual na África do Sul, mas vocês entenderam. Essa versão encaixa perfeitamente na ideia de um mundo começar a partir da escuridão, como a gente aprende em Gênesis.
Enfim, dona Patricia saca das manhas. Filhos desconfiados iam sofrer nas mãos dela.
Me dei conta que a minha fase dos porquês nunca passou. Aquela etapa da infância em que a gente quer saber a causa de tudo dura até hoje comigo. Uso no meu trabalho diariamente. Me deparo com um assunto, problema ou teoria e então me coloco a pergunta que não quer calar: tá, mas por quê?
Fiz um curso de um mês no Knight Center for Journalism, porque sou chique era grátis. O tema era Pesquisa para a redação: ferramentas práticas para dar profundidade às notícias e ao jornalismo investigativo. O que é um jeito rebuscado de falar que estão ensinando um bando de gente de humanas a lidar com dados e números.
Me interessei porque quero diversificar minhas fontes de pesquisa e muitas vezes é difícil saber por onde começar. Quando se passa muito tempo mergulhada em um só assunto, é complexo colocar a cabeça para fora da toca. E aqueles que o fazem se deparam com um mundo de informação cada vez mais vasto.
Uma das professoras lembrou que estamos acostumados a falar de dados como se fosse uma maçaroca de informação. Talvez até seja, mas eles contam histórias e têm razão de existir. Ela propõe que a gente faça as perguntas certas às planilhas e bancos de dados, pois as respostas irão brotar apenas para aqueles que sabem questionar.
Já a coordenadora do curso tem um quadro interessante atrás de si: “skepticism is a virtue”. Me pego olhando para ele o tempo todo. Fui ensinada que ser cética equivale a ir para o inferno e que é preciso simplesmente aceitar as coisas como são. Hoje entendo que minhas questões não passavam disso: eram perguntas, afinal. Talvez não tivessem resposta, pois a vida é assim mesmo, insondável. Parte da beleza reside nos mistérios.
Mas aprendi a abraçar meu lado desconfiado. É parte indissociável de quem sou. Gosto de ver para crer em muita coisa, não importa quão concretas elas pareçam. O grande desafio é não deixar que esse ceticismo descambe para o cinismo, a doença daqueles que perderam a esperança. Dá pra usar isso pra alimentar a nossa curiosidade, não a arrogância.
Até porque tem muitos batendo no peito, se dizendo donos da verdade - e não apenas nas religiões organizadas. Quando a gente aceita aquilo que não entende e começa a questionar, está assumindo as muitas lacunas que existem na história. E a partir daí, pode começar a construir o seu próprio entendimento do mundo. A vida fica muito mais leve quando a gente se leva menos a sério.
O que aprendi com o curso é que existem fatos e dados concretos, mas ali dentro existem pessoas com todas as suas contradições. Os números podem ser preto no branco; o ser humano não. Talvez as melhores histórias residam aí, onde as planilhas encontram a vida real.
É preciso saber seguir as pistas no chão e as migalhas pelo caminho, pois elas costumam levar às descobertas. Até lá, seguimos perguntando. Já dizia Susan Sontag: “As únicas respostas interessantes são aquelas que destroem as perguntas”.
💭 Imagina mais:
🌳 Essa história na newsletter da
me surpreendeu demais.🔦 A
fala lindamente sobre descer até o terreno escuro da criação.♻️ A
escreve sobre não perder as esperanças em um mundo caótico.Até a próxima! ✨
dados contém histórias, de fato, mas precisamos de boas jornalistas como tu para encontrá-las.
amei a reflexão!
e obrigada pelo link 😍
A minha fase dos porquês também nunca passou. Me vi tanto aqui nessas linhas que até compartilhei seu texto na minha última edição. Beijinhos.