Em busca da (f)agulha no palheiro
Beatles, Dolly Parton e Alanis Morissette entram em um bar
Quando Paul McCartney puxou “Hey Jude, don’t make it bad” no estúdio, não sabia que Ringo Starr não estava sentado na bateria. Ringo tinha saído pra ir ao banheiro e não havia retornado ainda, o que não era tão óbvio assim - ele ficava escondido na cabine do instrumento. A caminho de volta para a batera, Ringo ouviu Paul cantando lá dentro e correu para o banquinho, entrando na gravação logo antes de a música explodir no seu refrão tão marcante.
Foi dessa forma que um dos maiores clássicos dos Beatles ficou assim, como conhecemos hoje, 55 anos depois. Daria pra colocar essa na conta da genialidade dos quatro, fingir que foi proposital. Daria pra argumentar até que Ringo sempre ficou em segundo plano, atrás de seu instrumento, que ninguém notou sua ausência. Mas a história real é muito mais legal. Ela abre a possibilidade de que o que parece um erro pode, na verdade, virar um enorme acerto. Torna os Fab 4 menos fabulosos - e isso é ótimo. Porque a gente romantiza e fetichiza tanto a vida de artista, a aura do gênio criativo, que esquece que os caras são gente como a gente.
Pense em Sting sentando no piano sem querer antes de gravar “Roxanne”. Pense na própria “Hey Jude”, onde se ouve um “fucking hell” ao fundo. Pense em Michael Stipe dando uma risadinha porque pronuncia errado um dos versos de “The Sidewinder Sleeps Tonite”, do REM. Pense em “Tangerine”, quando Jimmy Page erra na introdução e começa de novo.
O único motivo porque a gente sabe desses “erros” é porque eles permaneceram. Não foram apagados, embora pudessem ter sido. Existe algo de marcante em ver os Rolling Stones inteiros errarem o tempo de uma música. Os torna humanos.
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Uma das minhas “lendas urbanas” favoritas na música é a de que Dolly Parton teria escrito “Jolene” e “I Will Always Love You” no mesmo dia. A própria cantora já deu declarações conflitantes sobre isso, afinal, ela compôs as duas músicas no começo dos anos 70. Tá desculpada se não lembrar de detalhes - mesmo que se trate de duas das maiores canções já escritas.
“um dia produtivo”
Quando Dolly encontrou a fita onde gravou as duas músicas, elas estavam ali, juntinhas, o que significa que foram parte da mesma sequência de canções que resultaram em seu disco de estreia solo, “Jolene”, lançado em 1974.
Na época, Dolly era reconhecida por aparecer na TV - ela fazia dueto com o cantor country Porter Wagoner em seu programa semanal, posto que ocupava desde 1967 e que a revelou para a América. Tanto que compôs “I Will Always Love You” como uma despedida de Porter para se dedicar à carreira solo.
mas e esse cabelo, né gente?
Já “Jolene” não só é uma ótima canção, como sua história ficou amplamente conhecida. Embora a letra passe a impressão de uma rivalidade entre duas mulheres por conta de um homem, ela de fato entrega a insegurança da compositora. “Jolene, por favor, não roube meu homem só porque você pode”, ela implora.
Naquela época, Parton já era famosa, rica e, claro, linda. Ainda assim, ela não gostou da atenção que uma atendente de banco - a tal Jolene - dispensava ao seu marido. Ele, por sua vez, ia múltiplas vezes ao banco apenas para receber a atenção excessiva da moça do caixa, o que se tornou uma piada recorrente entre Dolly e o marido. Ele se chama Carl Dean, aliás, mas quem entrou pra história mesmo foi Jolene.
É o nome dela que é chamado múltiplas vezes em uma letra que contém apenas 200 palavras. Os vocativos, as repetições (e a progressão de acordes também) são o que fazem dessa uma composição memorável. Quando se fala da contagem de palavras na letra de “Jolene”, não é para diminuir sua genialidade, muito pelo contrário. Menos é mais.
Talvez um raio não caia duas vezes no mesmo lugar, mas não dá pra negar que o que aconteceu com Dolly naquela época foram dois flashes de gênio, praticamente em sequência. Vinte anos mais tarde, essa grandiosidade voltaria pra ela: enquanto ouvia rádio no carro, foi pega de surpresa pela interpretação de Whitney Houston da sua antiga canção, agora na trilha sonora de um filme. Kevin Costner havia pedido sua autorização para a regravação, Parton deu sua bênção e esqueceu do assunto. Até que teve de parar seu Cadillac na beira da estrada para absorver o impacto daquele vocal que levaria “I Will Always Love You” a passar 14 semanas no topo das paradas duas décadas depois de ser composta.
O disco de “O Guarda Costas” venderia horrores e Dolly poderia dar tchau à sua música: agora “I Will Always Love You” tinha nova dona. Não pelo sucesso comercial superado, mas pela enormidade da performance de Whitney, inegável até hoje. “Jolene”, por sua vez, foi regravada dezenas de vezes desde então. Ninguém conseguiu roubá-la de Dolly (ainda).
Mas acreditar que essas duas canções foram escritas a poucas horas de distância parece aumentar sua potência. É uma história melhor, claro. E a gente adora uma narrativa, um ~storytelling~.
Tem uma outra “lenda urbana” musical que eu amo. É a história - não confirmada - de que a música “You Oughta Know”, de Alanis Morissette, é sobre o tio Joey de Full House. Ok, não sobre o tio Joey, mas sobre o ator que o interpretava na época, Dave Coulier. É que pensar no personagem da sitcom namorando uma rockstar deixa tudo mais bizarro. E a gente também ama uma bizarrice.
Mas essa narrativa só existe porque Coulier e Alanis de fato são ex-namorados, ainda da época em que ela era uma cantora emergente no Canadá. Ele, uns 15 anos mais velho; ela, uma jovem de 18, 19 anos com muito a dizer. Para o azar de Dave, Morissette lançaria o icônico “Jagged Little Pill” pouco tempo depois e o resto é história.
Dá pra dizer que “You Oughta Know” é a música mais furiosa entre todas as suas 12 faixas e 57 minutos. Na gravação, tem Dave Navarro (Jane’s Addiciton, Red Hot Chili Peppers) na guitarra, Flea (também do RHCP) no baixo. A bateria de Taylor Hawkins (Foo Fighters) só viria depois, na turnê (e no Programa Livre).
Mas o que faz dessa música marcante é a raiva e a ironia presentes na interpretação de Alanis. Afinal, é uma canção sobre uma mulher abandonada, trocada por outra. No auge dos 21 anos e em pleno 1995, Morissette gritava em todas as rádios da América: e aí, ela vai te fazer sexo oral no teatro? Ela teria os seus filhos? A insegurança é real - tanto pra mulheres já poderosas, quanto para aquelas ainda em ascensão.
Dave Coulier teve um momento Dolly Parton. Ouviu a música no carro, tocando na rádio. Ele foi de “que mina braba” pra “espera, essa é a Alanis?” em muito pouco tempo. Notou algumas similaridades entre a letra e a sua própria história com a artista - a diferença de idade, aquele dia que ela o interrompeu no meio do jantar pra tirar satisfação (uma história confirmada depois por Bob Saget - RIP).
Foi a imprensa quem lembrou do namoro dos dois, Dave não negou que a música pudesse ser sobre ele e pronto, a conexão estava feita. O nonsense se tornou irresistível, o tio Joey foi do crianção vivendo de favor na casa do amigo viúvo para um sujeito capaz de partir corações. Se fosse o tio Jesse, essa narrativa toda não se sustentaria. Todo mundo sabe que o John Stamos tem total capacidade de ser apaixonante.
Alanis, por sua vez, nunca confirmou a inspiração da letra, apenas que era pessoal. O suspense é palpável, tanto que rendeu um episódio inteiro de Curb Your Enthusiasm em 2002, com participação da própria cantora. Já a história de Dolly Parton serviu de fagulha para um episódio de Girls5Eva em que uma Sara Bareilles desesperada por inspiração para compor invoca o espírito da deusa country - só que, aqui, Dolly virou Tina Fey (em uma imitação tão digna que deixaria o tio Joey orgulhoso).
Todas essas canções foram pensadas de um jeito e ficaram na cabeça das pessoas de outro. Isso não é algo que artista algum consegue controlar - e tá aí uma das grandes belezas da arte. Quando a gente dá play em alguma coisa, está consumindo tudo - o “conteúdo” e a narrativa no entorno. Amamos uma obra com contexto, mesmo que ele seja de caos. Hoje um disco badalado já sai com documentário, com série na Netflix ou Disney+.
Na era dos 300 lançamentos de música por dia, a narrativa importa mais que nunca. A música que é sobre o ex-marido infiel, a cantora que se reinventa depois de uma batalha contra as drogas estão aí pra fazer valer nossos plays, cada vez mais valiosos.
Como todo mundo, eu clico na matéria de que fabricaram o reencontro do Oasis com inteligência artificial. Eu ouço quando trocam Jay-Z e Kanye West por Biggie e Tupac e penso “legal, mas onde isso vai parar?”.
Daí eu lembro que para aí mesmo. O robô só tem uma narrativa. “Fulano cria tal coisa com inteligência artificial” já ficou batido e ainda estamos em abril. Eu nunca perco uma oportunidade de ser a drama queen e até eu acho dramático o clima fatalista de quem acha que a IA vai substituir a arte, a cultura.
Entendo quem se preocupa com os empregos, com o lado ético de tudo isso. Mas só quem experienciou “Don’t Look Back in Anger” ao vivo sabe que não é sobre gerar conteúdo, é sobre criar algo que mova as pessoas, uma agulha no palheiro que poucos humanos conseguem encontrar - imagina só um robô.
LINKS DA VEZ
“o paradoxo que a gente vive: treinamos as máquinas para serem mais naturais enquanto nós nos tornamos cada dia mais artificiais”: ótima edição da
da sobre o que é, de fato, inteligência.“A dedicação ao mergulho — quando ninguém parece ter tempo para nada além de molhar os pés”: na
, a pergunta onde foram parar os vazios.O senhor meu marido,
, também migrou pro Substack. E já escreveu lindamente sobre nossa experiência assistindo “Suzume”, um filme que fala sobre os sobreviventes de grandes tragédias e como carregamos isso no peito.Esse carrossel da Mariane Santana:
A newsletter do Série Maníacos agora está no Substack! Vem conferir
, onde escrevo sobre o mundo da TV.Nem tem link aqui, só queria dizer que os domingos com Succession, Yellowjackets e Barry estão, ó: 🔥
Wow! Que texto massa!
eu ameeeiii