Estamos em obras. Desculpe pelo transtorno.
Há muito caminho a pavimentar até chegar lá.
Adoro olhar para a vida como uma obra em progresso. Não raro, vejo as coisas pela lente criativa, em que a obra se torna um resumo da história do próprio artista. Uma com muitos altos e baixos, sucessos e êxitos, refletindo o que é ser humano e estar no mundo: um trajeto com buracos e quebra-molas, mas também céus abertos e horizontes livres.
Gosto, principalmente, de desmistificar gente que admiro muito. De entender que até pessoas que eu considero dignas de honrarias e prêmios têm lá suas fases pouco inspiradas. Ou que simplesmente levou um tempo até que chegassem lá - onde quer que “lá” fique.
Conhecemos artistas quando já estão prontos, transformados em produtos para consumo nas prateleiras da sua plataforma de streaming favorita. Parece que nasceram assim, destinados ao estrelato. Uma ótima forma de entender como isso é balela é um vídeo do Ed Sheeran no programa do Howard Stern.
Você pode até não ser fã do Ed, mas não há como negar que o rapaz tem um certo talento para atrair pessoas para perto - seja fãs, seja outros artistas. Sheeran tem uma reputação de ser um ótimo parceiro de composição e de ser um cara agradável em um meio onde egos controlam todas as conversas. Sim, ser legal na indústria da música é um diferencial. A nota de corte é baixa, eu sei.
Então Ed Sheeran foi ao programa de rádio de Howard Stern - um cara que, digamos, não tem a mesma reputação. Lá pelas tantas, Stern fala que Sheeran faz parecer fácil e que ele sempre teve esse talento. Ao que o cantor responde que não só não foi assim, como está documentado nas suas primeiras composições o quanto ele desafinava e não conseguia controlar o próprio fôlego. Ele pede para a produção puxar uma música específica dessa época para provar seu ponto. E quando começa… a palavra que vem em mente é “sofrível”.
Sheeran conta que, entre “Addicted”, feita aos 14 anos, e gravar seu primeiro sucesso, “The A Team” aos 18, foi o tempo que ele levou para amadurecer e polir suas habilidades. Ele usa essa música para mostrar a jovens que estão começando que eles precisam passar pela parte difícil antes.
Em quatro anos, eu aprendi sobre harmonia, como cantar afinado, como me apresentar e você também consegue. Eu aprendi com o fracasso constante. Você não aprende nada com o sucesso - você só aprende com os fracassos. E isso é uma das coisas que me incomodam no mundo atualmente. Ninguém fala mais sobre os fracassos. Fracasso é vergonhoso, então vamos enterrá-lo e não falar sobre isso. Ninguém fala “o que aprendemos com isso?”. Só querem falar sobre o sucesso. Mas não há nada no sucesso. Ele só acontece depois de falhar centenas de vezes. Mas não acontece da noite para o dia. Você tem que ser um lixo. Você tem que passar pelas pessoas rindo de você. Tem que ouvir as pessoas falando “arrume um emprego de verdade, isso não vai dar certo”. E você tem que acreditar que vai melhorar.
Esse papo voltou à tona pra mim recentemente, quando saiu um novo disco da Maggie Rogers, de quem eu sou tiete desde o álbum de estreia, “Heard It In a Past Life”, de 2019. Este seria o terceiro, então aproveitei a ocasião pra fazer uma retrospectiva de tudo que ela já tinha lançado. Adoro um esquenta!
Afinal, tudo pareceu muito rápido, um turbilhão. Apenas sete anos atrás, viralizou um vídeo da Maggie mostrando para o Pharrell Williams uma das músicas que acabariam em “Heard It In a Past Life”. Ele estava visitando a turma dela na faculdade NYU e dando dicas para os alunos sobre suas produções - um dia normal em Nova York, pelo visto. Quando toca “Alaska”, de uma jovem Maggie sentada ao seu lado, ele é só elogios. Diz que não tem observações a fazer e que sente a personalidade dela ali. É algo único.
Portanto, o disco de estreia solo da Maggie já chegou chancelado por um dos maiores caras do mercado. Digo, o disco real/oficial por uma gravadora grande, porque a menina vinha lançando coisas informalmente desde 2011.
Mas é aquela história: quem vê close não vê corre. Apenas um ano depois de ter a sua vida mudada por aquela masterclass surpresa, Rogers lançou “Notes from the Archive: Recordings 2011–2016”, um disco dividido em quatro partes. Cada uma delas traz encarnações diferentes da mesma artista: o EPzinho que ela gravou na escola; a primeira banda, Del Water Gap; uma demo solo chamada “Blood Ballet”; e o EP roqueiro que Maggie fez na época da faculdade, quando já estava para se formar em Produção Musical Avançada.
O que torna esse disco curioso é que ele é uma coletânea em ordem reversa. Primeiro, se ouvem as faixas mais recentes; e, no final, está uma Maggie Rogers adolescente. O legal de “Notes” é que foi lançada uma versão com comentário de áudio, então há uma introdução e conclusão, além de faixas da artista falando antes de cada seção do álbum. Ela diz sobre o lançamento:
É sobre honrar o tempo que leva para algo se formar completamente. É sobre desenvolvimento artístico e sobre como esse processo é importante e sagrado. Eu queria dar a vocês a chance de me ouvir crescer e errar, me ouvir mudar.
Maggie diz que é hilário o efeito Benjamin Button dessa compilação, ouvi-la ficando cada vez mais jovem. Mas também há algo que fica claro desde o início. Assim como Ed Sheeran diz naquela entrevista, não havia outra opção. Estas são pessoas que nasceram para o que fazem hoje e a sementinha do que viriam a se tornar estava lá. Claro que ela foi muito regada e cuidada. Houve investimento de dinheiro, de tempo, de energia. Mas ela deu frutos.
Falei recentemente com a Chappell Roan, uma cantora que vem despontando, desde o ano passado, como um novo nome do pop. Ela ainda é um pequeno achado - muita gente já gostou e superou; mas a maioria ainda não se ligou nessa garota do meio-oeste americano que adora se vestir de drag e cantar sobre amar outras meninas. Na entrevista, Chappell apareceu totalmente desmontada, em todos os sentidos. Comentei sobre a velocidade que as coisas vinham acontecendo na sua carreira, mas sabendo que ela levou muito tempo abrindo esses caminhos. Então perguntei: qual é o corre que ninguém vê enquanto ela tá dando close no palco do Coachella?
Tipo, a ralação pra mim envolvia não ter como pagar minhas refeições. Eu vivia de proteína em pó e shakes feitos com água no lugar do jantar, por muito tempo. E acho que foram os anos de não se deixar abater… E se houvesse o menor sinal de que havia uma luz no fim do túnel, eu achava que estava imaginando, sabe? Que não era possível haver nenhum pouquinho de luz. E foi assim todos os dias por mais ou menos 10 anos. Todo dia por uma década. E eu dizendo pra mim mesma: “sim, eu consigo. Sim, vai dar certo, eu vou conseguir”. E ainda me falo isso.
A gente não sabe o tanto que foi preciso até chegar lá. Porém, mais que as tais 10 mil horas, existe um investimento emocional grande - às vezes, grande demais. Artistas são, afinal, essas pessoas que dão um salto no abismo. Não existe paraquedas. Não há plano B.
Não é todo mundo que tem paciência pra isso, mas eu particularmente acho interessante ler um autor cheio de potencial ainda não desenvolvido. É gostosa a sensação de chegar no início do processo que vai tornar aquela pessoa uma voz interessante no futuro. Ver isso amadurecer é um dos privilégios de quem está disposto a acompanhar essa viagem.
Amo ver de perto o desenvolvimento criativo de pessoas que, por um desvio do destino, poderiam estar trabalhando na loja de roupas do bairro. Não eram talentos inegáveis, mas eram teimosos. Elas são um testamento do poder transformador do tempo e do esforço. Não existe versão final - ou talvez exista, mas só mesmo no fim. Enquanto isso, somos todos rascunhos. Alguns mais avançados, outros menos.
E, se tem alguma coisa que trabalhar com a indústria da música tem me mostrado, é que na maioria das vezes, ninguém sabe exatamente o que está fazendo. Não é uma ciência exata, afinal. Podemos, pelo menos, apreciar o caminho até o destino.
💭 Imagina mais:
Gravei esse Pós-Jovem com meu amigo André Felipe sobre Friends, uma das coisas que mais me dão quentinho no coração!
Eu falei com muita gente especial nos últimos tempos, então vou deixar aqui links pra vocês sacarem: Lucas Gonçalves (Maglore), Travis, Diogo Defante e Planet Hemp.
Meu amigo Otávio Palmeira, do perfil Vendaval de Livros, virou substacker! Recomendo demais ler o que ele escreve, porque é um cara muito lúcido sobre tanta coisa, e não “só” literatura.
Obrigada por ler até aqui ✨
Esse texto me aconchegou. O caminho é mesmo longo e árduo, mas todo mundo tem que trilhá-lo pra chegar no tal do sucesso. Sigo aprendendo (e muito) com os fracassos.
Como eu amo te ler <3
Antes de mais nada, agradecer a indicação. Tenho nem roupa pra estar por aqui! ahahhaa E agradecer por aqui também o incentivo e a força que você me deu.
Tenho a sensação de que a forma como a sociedade tem se formado leva cada vez mais a uma exigência de estarmos todos prontos, sem falhas, o mais rápido possível. Aí calha de tudo ser descartável mais cedo.
Eu adoro esse vídeo do Pharrell e da Maggie (foi por ele que a conheci inclusive). É MUITO legal ver não só a reação dele como a dela, dá um conforto até pra gente mesmo, de saber que faz parte do processo. Tudo faz.