Valéria é uma série espanhola que é vendida pelas suas cenas picantes. E existem muitas delas. Nudez e sexo em todos os ambientes e posições possíveis. É quase educativo.
Mas a série não é sobre isso. É uma espécie de Sex & The City dos tempos atuais, em que quatro mulheres (se você acha que uma delas se chama Valéria, acertou) discutem seus dilemas amorosos, profissionais e existenciais. Tudo se passa em uma Madri com uma fotografia que te faz querer arrumar as malas e parcelar uma passagem em 24x na Decolar.com. E aí, ao invés de ficarem horas falando ao telefone, como Carrie, Miranda, Charlotte e Samantha, elas mandam áudios gigantes no WhatsApp. Quando trocam mensagens, bolhinhas de diálogo surgem na tela - aquela coisa bem muderna.
Este ano, Valéria chegou ao fim com a terceira temporada, deixando alguns fãs (que não leram os livros originais) felizes com as escolhas da protagonista e outros tantos putos (aqueles que leram tudo). E tudo bem, nem Succession foi unanimidade no final, né? (Não venham falar mal de Succession comigo, estejam avisados).
Em Eu Estava Lá, quarto episódio da temporada de encerramento, Valéria faz um desvio de rota. Começa na linha do tempo que já conhecemos, mas desemboca em um flashback ao passado das quatro amigas - Val, Nerea, Lola e Carmen - enquanto discutem um suposto estudo da Universidade de Wisconsin sobre as experiências formativas que carregamos para a vida, desde a adolescência.
Quando as meninas voltam no tempo, a sala do apartamento da protagonista se abre para abarcar quartos adolescentes dos anos 2000, bibliotecas, bares, escolas, praças. As atrizes jovens dividem espaço com as mais velhas, num vai e vem geracional que convida a observar e refletir: onde foi que tudo começou?
Elas encenam, ali, situações facilmente identificáveis por qualquer mulher que cresceu nessa época - e nem tô falando só dos celulares e iPods datados. Uma mescla de liberdade sexual, de garotas que tomam iniciativa, se choca com padrões machistas, com garotos que não aceitam ouvir não, com preconceito, homofobia, gordofobia.
Ainda cheia de sardas na cara, Valéria se mostra interessada por um bonitinho do colégio. Ele percebe e tenta tirar vantagem disso, a forçando a ir além do que se sentia confortável. Lola entende que sua tendência a se apaixonar por homens com grande diferença de idade e emocionalmente indisponíveis está ali desde o início. Casos extraconjugais, abandono, solidão são o resultado de uma vida adulta inteira que a deixa se sentindo vazia.
Carmen revela que, na adolescência, era gorda e sofria ao ouvir comentários sobre sua aparência. Mesmo o namorado não aceitava assumir o relacionamento, criando uma ideia que a acompanharia a partir de então, sobre seu valor enquanto pessoa. Por fim, Nerea é a pobre garota rica, nascida em berço de ouro e que não poderia ser quem era: uma adolescente lésbica. Aprendeu a esconder, desde muito cedo, o que desejava. Isso a tornou um robô sentimental, uma pessoa que só consegue viver de acordo com as próprias regras e que não suporta quando as coisas fogem ao seu controle.
Ao fim do episódio, as amigas revelam por que estavam se arrumando: iam sair de casa, em direção a um protesto feminista pelas ruas de Madri. Mulheres de todas as faixas etárias se unem em cânticos e gritos de ordem por respeito aos seus corpos. É um encerramento bem potente para uma sequência de micro-histórias contadas em apenas 37 minutos. (Eu só entreguei esse monte de “spoiler” por se tratar de um episódio completamente à parte de toda a história da série - é possível assiti-lo sem ter a menor noção do enredo, inclusive. Recomendo.)
Me tocou bastante essa noção de que estamos todas interligadas. De que fomos ensinadas - dentro de casa mesmo, por quem nos ama - a aceitar menos, a nos reprimir, a ter vergonha de quem somos. Somos produto de mães e pais que também lidaram com escassez emocional, com rigidez de tradições e zero diálogo, sem acesso à terapia como quem veio depois. Essa coisa de adulto em análise só é normalizada nos filmes do Woody Allen: por aqui, até pouco tempo atrás, isso era inacessível para a maioria e ainda vinha com uma forte carga de preconceito.
Mas essa geração, dos 30 anos, é a que fez a transição. Sobrevivemos ao jeans de cintura baixa, a punições severas e violentas, a testes da Capricho, a distúrbios alimentares e agora temos os olhos mais abertos. Somos aquele grupo etário que decide parar de pintar e alisar os cabelos, como se isso fosse uma grande coisa - porque é. Que hoje tem o conceito do boy lixo, do esquerdomacho. Que tem termos como gaslighting na ponta da língua.
Talvez seja ingenuidade pensar que esse ciclo se fechou, que seremos a última leva de mulheres ensinadas a sentar de perninhas cruzadas e que a base vem forte - as pequenininhas já naturalizam tanta coisa que a gente precisou aprender a duras penas! A turminha da minha filha brinca de super heroína, não aceita grosseria dos meninos, acha normal pegar passando na TV um esporte com mulheres jogando muito, ou uma banda barulhenta com garotas quebrando tudo.
Só de escrever tudo isso notei que é, sim, ingenuidade. O próprio episódio de Valéria mostra como a luta não acabou, e se acabar um dia, vai demorar bastante. A série em si é uma contradição: embora Carmen tenha sido uma adolescente gorda, ela só começa a se dar bem na vida quando já está magra e dentro dos padrões, igual às demais personagens. Existem séries estreladas por mulheres gordas, claro. Mas uma em que elas são mostradas para além de seu peso, realizadas, bem resolvidas sexualmente e profissionalmente… essa ainda não chegou em mim, pelo menos.
O que me pegou nesse encontro de histórias de adolescência das moças espanholas é que, infelizmente, elas são muito familiares. Não sei vocês, mas eu mal tive a “tal” conversa sobre gravidez na adolescência (um resumo: não faça sexo, não fique grávida. Fim). Quem dirá ouvir, nos meus anos de formação, sobre não aceitar menos do que mereço - por exemplo, respeito e dignidade. A entender o poder de falar “não” em múltiplas situações que se tornariam abusivas mais à frente. A aceitar que é OK não ser como todo mundo, que há força e beleza em achar seu próprio caminho ao invés de sofrer para se ajustar à rota padrão.
Mas existe uma luz no fim do túnel: aquele momento em que a gente já cansou de levar porradas da vida e aprende que não vale a pena tentar caber nos moldes de ninguém. Na minha bolha, isso parece estar acontecendo após os 30. Muita gente começando, agora, a viver abertamente sua sexualidade, mudando de profissão, não aceitando ambientes de trabalho tóxicos, denunciando relacionamentos abusivos, educando os filhos com disciplina positiva, quebrando os padrões que tanto os machucou lá no início.
Pode não ser o caminho para a redenção, mas é um caminho. Ficar nos ciclos anteriores é que não dava mais. Ainda bem.
Estou toda boba que já somos mais de 500 leitores aqui! Obrigada a todo mundo que lê, comenta, compartilha, faz restack, a coisa toda 🙂
Meu momento #mandafreelas de mais orgulho recentemente foi essa matéria, sobre a newsletter da
e tendência das news no Brasil. Escrevi para o Inbox Collective, ou seja, minha primeira matéria na gringa por um site que é referência em comunicação por email! Se você chegou até aqui, é porque se interessa pelo formato e pelo potencial das newsletters, então que tal dar uma passadinha lá no post?
Adorei o texto! E obrigada por me apresentar a Valéria, já quero assistir!
Amei o texto e adoro a série! Ainda não vi a última temporada, mas fiquei com mais vontade de ver! (tirando a parte do Victor que dá ranço só de pensar… hahaha)