Como muita gente, me emocionei com a história das leituras compartilhadas na família da Ruth Rocha. Não é necessariamente uma novidade, a própria Ruth já havia contado, em entrevistas, dessa solução engenhosa para o ritmo de leitura diminuído pelo glaucoma (acho que ouvi aqui, no podcast Página Cinco).
Mas nesta, específica, para o podcast Livros no Centro, ela, sua irmã Rilda e o neto Pedro contam em mais detalhes das suas ligações diárias para lerem. Tudo começou quando Ruth passou a ter dificuldades com sua visão, e então a irmã se ofereceu para lhe garantir a constância daquele que era o maior prazer na vida. Veio a pandemia e elas continuaram, só que por telefone. E o neto logo entrou na dança, hoje integrando esse clube de leitura exclusivíssimo.
O que me tocou foi mais do que a doação de tempo feita pelos dois familiares – algo que, sem dúvidas, merece aplausos. Mexeu comigo a cadência dessa leitura mais vagarosa, saboreando as palavras, uma leitura que tem no encontro a sua maior finalidade. Não é acabar um livro e postar no Goodreads. É tirar uma horinha por dia para mergulhar em mundos alheios, com olhos terceiros, com voz de outrem. Nós, leitores com a visão (ou as lentes do óculos) em dia, prezamos pelo controle. Munidos de páginas ou Kindle, escolhemos local e circunstância, café ou chá, trilha sonora. Na vida dos adultos com carreira, casa, carro, cachorro e criança, a leitura é o “tempo pra mim”. E cada vez mais raro, vamos combinar.
Ouvir essa história toda me levou de volta àquela vez em que eu conheci Ruth Rocha, na Bienal de São Paulo. Em um dia com Maurício de Sousa e Ziraldo, o stand da Ruth estava – sem exagero — deserto. Mas tudo bem. Ela assinou minha edição de Como se fosse dinheiro, a obra que me aproximou da sua literatura graças a um livro didático. Alguns anos depois, eu estava ali finalmente adquirindo a minha própria cópia, dessa vez assinada com um sorriso.
Ruth Rocha hoje tem 93 anos. Com 215 livros publicados (!), faz parte do panteão da literatura infantojuvenil brasileira, também ocupado por Lygia Bojunga, Ana Maria Machado, Eva Furnari, Sylvia Orthof, Cecília Meirelles, Pedro Bandeira e tantos outros. Cresci lendo essa turma toda, virei rato de biblioteca aos cinco. Nessa época, recém-chegada ao mundo das letras, me encantei com essa nova habilidade. Parecia um superpoder, então eu não tinha o menor medo de “gastá-lo”. Era aquela criança que andava pela rua mais devagar para conseguir ler todas as placas.
Gostava de pegar livros na biblioteca e lê-los para meu avô após o almoço. Ou então catava um dos didáticos da minha mãe – um dos privilégios de quem era filha de professora. Seu Pandeló era uma criatura de hábitos, de modo que às 14h, quase que exatamente, deitava em seu colchão para esticar o esqueleto já demasiadamente longo. Então batia ao seu lado e me chamava: “Vem cá, Tata. Lê pro vô”. Eu adorava ter essa função de colocar meu velho pra dormir, quase tanto quanto não gostava quando ele de fato adormecia, no máximo cinco minutos depois. Eu o estava entediando? Que falta de modos! Me recolhia à minha insignificância e saía do quarto (mas sem bater a porta).
Hoje, entendo o significado de tudo isso. Do gesto de carinho que é ler pra alguém, ainda mais uma pessoa que não pode, por algum motivo: meu avô, pelo analfabetismo contraído ao longo de uma vida na lavoura; minha filha, pelo desconhecimento do que une as letras. Flora ainda não entendeu a magia que as conecta, embora isso exerça um fascínio sobre sua cabecinha. Reconheço nela o mesmo encanto que eu tinha ao presenciar minha mãe lendo as páginas amarelas da Veja. Os olhos deslizando pra lá e pra cá na revista e eu ali, sem saber o que tudo aquilo significava.
Depois que a gente aprende a juntar lé com cré, a vida de leitor passa a ser mais solitária. As rodas de contação de história ficam cada vez mais raras e, no máximo, lemos em voz alta um trecho de um texto na escola. Quem segue lendo por vontade própria, o faz quando a vida permite. No ônibus, no audiolivro lavando a louça, no apagar das luzes da energia mental antes de dormir. Eu e meu marido gostamos de ler juntos, ainda que separadamente. Cada um com a sua leitura da vez, lado a lado no sofá ou na cama. Ano passado estava complicado estar junto nessas horas, então decidimos mudar: ler cada um no seu tempo, a mesma história. Fizemos isso com Crime e Castigo e rendeu ótimas conversas – essas sim, cara a cara.



Gosto de manter esses pequenos compromissos na minha rotina. Lá pelas 20h30, eu e Flora estamos escolhendo a leitura do sono: um livro mais longo ou dois curtinhos. Começamos a recitar, depois de muitas repetições, as palavras de Ziraldo, Pedro Bandeira, Dr. Seuss, Shel Silverstein, Ilan Brenman, Silvana Rando, Caroline Arcari. São as nossas canções de ninar, embalando a noite sob o manto da familiaridade. Uma vez por mês, chega um integrante novo pra essa biblioteca, prontamente memorizado até a chegada do próximo. Agora, Flora pergunta: “mãe, me mostra essa palavra no livro?”. Eu aponto, explico como aquelas letras produzem o som que ela ouviu, e seguimos em frente. As palavras irão se revelar no tempo certo, no tempo delas, no tempo dela.
Mal sabe essa pequena da grande aventura em que está prestes a embarcar. E eu quero ir junto.
💭 Imagina mais:
📚 Depois de um flerte à distância por mais de um ano, comprei num impulso “A biblioteca no fim do túnel: Um leitor em seu tempo”, livro de crônicas do
, da newsletter, coluna e podcast (que citei ali em cima), e não me arrependo. Uma edição da news me pegou demais: a reflexão sobre nossos atos mais extremos nos definirem. Venho pensando muito em Anthony Bourdain (talvez por ter escrito sobre o filme que vão fazer), e tô inclinada a comprar algum de seus livros. Algum iniciado tem dicas pra compartilhar?🎙️ Algumas conversas interessantes que tive recentemente: Emanuelle Araújo, Vanessa da Mata, Céu e PJ Morton (Maroon 5).
Fica aqui minha intenção de um comentário que problematize apps como Goodreads, mas a preguiça da segunda-feira não permite. E fica também esse abraço compartilhado que é a lembrança de uma infância literária <3
Que lindo