1.
Existe infarto de veia criativa? Se não tá no registro da OMS, deveria estar. Pode não ser fatal, mas deixa muitas sequelas.
2.
Passo a vida escrevendo. São matérias jornalísticas sobre o que outros fazem. São newsletters de empresas, de influenciadores, uma escrita fantasmagórica, invisível. São posts de redes sociais - não as minhas. São roteiros de YouTube e podcasts que não terão minha voz. São entrevistas com gente famosa, cujos ditos eu meramente transcrevo.
As palavras não são minhas, mas fluem através de mim. Cada toque no teclado, uma energia gasta, algumas sinapses formadas, tudo entregue.
No fim, não sobra caminho por onde poderiam passar as outras palavras - as minhas.
Não se engane, o meu DNA está em cada um dos textos feitos a trabalho. Me orgulho disso. Há um olhar e uma bagagem que só eu posso trazer - nem melhor, nem pior que ninguém. Só diferente, único, com a minha perspectiva.
Mas também sou boa em me camuflar na paisagem. Ouço o que me contam, passo pelo filtro da narrativa, miro no público-alvo e costumo acertar.
O escritor, vivo ou fantasma, é um tradutor de silêncios. Pega o que não existe e faz brotar, do nada, tudo.
3.
Enquanto isso, a outra veia vai ficando entupida. Todas as palavras não escritas, o acúmulo do não-dito é cruel. As ideias desperdiçadas guardam rancor. Vão ficando por ali, para te lembrar de todas as vezes em que você escolheu o que é cômodo, o que é pago, o que é familiar.
Escrever as palavras dos outros tem dessas coisas - a gente se acostuma a buscar ganchos. É como brincar de esconde-esconde com uma criança pequena: o esconderijo vai ser sempre o mesmo. A emoção fica guardada ali atrás, a informação está aqui dentro, basta perguntar de outra forma e ela brotará. É o “abre-te, Sésamo” da vida real.
Quem sabe como pedir consegue extrair os tesouros que quiser. É o barato da coisa.
É o mais perto que eu, de humanas, chego de eliminar o X da questão. Descobrir seu valor ou simplesmente me tirar da equação é fácil. A gente alega imparcialidade. A história nasce pronta, cabe a mim contá-la.
4.
É diferente destas palavras aqui, que saem com esforço. Elas vêm de outro processo de apuração, mais parecido com o que faz um chef, um detetive de sabores. Busca onde eles se intensificam, propõe harmonizações. Para que essas palavras fiquem prontas, é preciso separar o joio do trigo, deixar de fora a vida doméstica, as notificações dos compromissos profissionais, catando grãozinhos.
Em muitos aspectos, me sinto como Carmy, de O Urso. As turbulências da vida fazem com que as suas criações e a sua veia mais pulsante, a criativa, se recolham. O personagem de Jeremy Allen White precisa se impor alguns momentos de silêncio total, de esconder-se do mundo, para experimentar. Sumir do mapa, não atender ninguém, se trancar na cozinha e fingir que não há trauma, vício, luto e demolição lá fora.
5.
Cada um tem a sua versão do abismo, do turbilhão dos dias que engole toda chance de autoexpressão. A minha é o combo da Mulher Que dá Conta de Tudo®, incluindo um trio de vida doméstica, profissional e maternidade. Sim, essa é a versão básica, mas você pode aumentar para médio e grande por apenas mais 1 ou 2 reais. Não, não tem brinquedinho, senhora.
A Mulher Que Dá Conta é polivalente, então ela faz o malabarismo sem deixar cair uma bolinha sequer - por mais que uma quase escorregue sem querer. Ninguém viu, ufa.
A criança pode ir pra escola com uma meia do avesso, mas tá viva. O texto pode ter um errinho de digitação, mas tá entregue. O almoço pode estar meio salgado, mas só porque ela se distraiu enquanto respondia aquela mensagem de trabalho.
Então a Mulher Que Dá entrega tudo de si. Entrega tão completamente que chega a entregar com dor, sem dor, licença, férias ou décimo terceiro.
Mas A Mulher Que edifica o lar, as finanças e a própria aparência pode, enfim, descansar. Às 22h ou no fim de semana, se não tiver um aniversário do coleguinha da escola (Alexa, coloca na lista de compras o presente do Pedrinho).
6.
Colocando tudo isso na balança, é compreensível que mulheres que não têm um Um Teto Todo Seu não consigam, no fim das contas, dar conta. Depois de pagas as expectativas e as responsabilidades, sobra pouco saldo.
Então deixamos pra amanhã. É assim que a veia criativa vai de viva, ativa, potente, para uma sombra silenciosa e rancorosa. Ali, nada passa, tudo fica entalado na gordura do que não foi processado. É preciso extrair. O procedimento é minimamente invasivo, mas não há anestesia.
Com intenção, é possível remover parte do que nos drena a energia. Selecionar o que é vital e o que é o oposto. Aos poucos, os caminhos se abrem para que as primeiras palavras possam fluir. É lento e ainda doloroso, mas ninguém falou que seria fácil, já dizia o poeta (Chris Martin).
O processo é tipo ir à nutricionista pra ela te passar o que precisa comer e evitar - apesar de você já saber. Estamos plenamente cientes daquilo que nutre a nossa alma - às vezes só somos teimosos o suficiente para lutar contra isso.
Mas não tem jeito. A veia criativa se impõe. Ela quer pulsar, existir, ser reconhecida como parte intrínseca de quem somos. Quando ela é ignorada, deixamos de ser. E o preço disso é alto demais.
💭 Imagina mais
Delícia ler sobre a visita do
à casa de Saramago nas Ilhas Canárias.A
traduz as nossas contradições - e como é importante aceitar as múltiplas possibilidades que existem dentro das nossas identidades. Caiu como uma luva aqui.Obrigada por ler! Até a próxima ✨
Você é incrível!
é verdade, "o acúmulo do não-dito é cruel"
que possamos encontrar maneiras de seguir dizendo, então.