Imagina Só #20: Narrativas falsas ou histórias alternativas?
Efeito Mandela, atentado de Carrero Blanco e versões diferentes da mesma história
Como foi a virada aí? Todo mundo bem? Aqui, foi um período de muito corre-corre, pois sou mulher e cozinho nessa época (e também o ano todo). Entre um scroll e outro, me deparei com as comemorações do 20 de dezembro, data em que, em 1973, um militar franquista foi assassinado na Espanha. Imagina só o tipo de gente que você tem que ser pra sua morte ser celebrada? Pois é.
Não tô aqui pra julgar Luis Carrero Blanco, acho que o ETA já fez isso com esse atentado. A história também o fez, para o bem ou para o mal. O magnicídio virou de teoria da conspiração (de que a CIA teria apagado o sujeito – onde já se viu uma coisa dessas???) a piada (o carro, explodido, passou um prédio de cinco andares, rendendo o título de “primeiro astronauta espanhol”), mas o fato é que a queda de Blanco teve peso considerável. Francisco Franco morreria dois anos depois, em 1975 e, sem seu mais provável sucessor, deixou um governo enfraquecido que não resistiu às suas facções internas. No fim das contas, a sementinha bomba plantada foi um dos eventos que levaram à transição democrática posteriormente.
O que me chamou atenção nessa história toda foi a imagem de um tweet, onde o carro aparece nos ares, já sob uma nuvem de detritos. O ataque foi planejado por muito tempo, inclusive com a construção um túnel que abrigou os 100 kg de explosivos sob a rua onde Carrero Blanco passava sempre para ir à missa. A foto é impactante, o que me levou à pergunta imediata: tinha alguém com um dedo no detonador e outro com dedo no obturador da câmera? Tá aí um grupo terrorista com visão de potencial midiático antes de ser modinha.
Mas pelo visto, não. A imagem comumente usada para representar o momento exato em que o automóvel do militar explode é, na verdade, a reprodução do filme “Operação Ogro”, de 1979. Nele, a execução de Carrero Blanco é refeita quase lance a lance, com uma ousada cena em que o carro passa por cima do prédio e cai do outro lado. Tem um outro frame que parece tirado de um filme de Harry Potter, com o Ford Anglia dos Weasley voando por Surrey. A reconstituição ficou tão icônica que muita gente a tem como a imagem real/oficial do que aconteceu.
Confusões do tipo sempre foram comuns, mas tem gente que jura de pé junto que testemunhou acontecimentos igualmente marcantes… que simplesmente nunca existiram. Já ouviu falar em Efeito Mandela? O nome veio da pesquisadora paranormal Fiona Broome. Ela compartilhou o fato de que poderia apostar que Nelson Mandela havia morrido nos anos 80, quando ainda estava preso ilegalmente durante o regime do apartheid na África do Sul.
A maioria de nós sabe que não foi assim que a história se desenrolou, porém um grupo considerável admitiu que tinha a mesma “memória falsa”, inclusive de ver a notícia do falecimento na televisão, na década de 1980. Outros tantos relatam que assistiam Dragon Ball Z na Globo quando entrou o plantão informando sobre o ataque às Torres Gêmeas. Uma geração inteira conta isso, quando na verdade nem passou Dragon Ball nesse dia.
Isso sem falar do Efeito Mandela visual, uma concepção equivocada de ícones e logos da cultura pop. Pessoas que juram que o tiozinho do Monopoly tem monóculo; que vê uma ponta preta no rabo do Pikachu; que acredita que o C-3PO tem as duas pernas douradas. Em um estudo, apenas um terço das pessoas selecionava os ícones em suas versões corretas; o restante não só escolhia errado, como era sempre o mesmo errado.
De alguma forma, esse misto de crenças errôneas e experiências coletivas vai se espalhando, ganhando força e status de real na cabeça de grupos inteiros. A meu ver, não chega a ser de fato danoso, pois toda informação é checável com 3 toques no celular. O que acho mais intrigante é a visão compartilhada que une pessoas sem muito em comum em torno de um mesmo equívoco, estranhamente específico. Sem causa, razão ou circunstância, apenas porque seus cérebros processaram as informações e imagens daquele jeito, e possivelmente as verão daquela forma pra sempre.
Dizem que repetir uma mentira pode fazer com que a sua percepção mude, que se torne verdade. Repostar uma imagem não tem esse poder. A “foto” do atentado de Carrero Blanco sempre será um frame de filme, mas o que fazemos com essa imagem e o potencial que ela tem de gerar narrativas próprias é onde está seu verdadeiro poder.
O carro detonado hoje é peça de museu, de exposição e um símbolo do que acontece com fascistas (#neverforget). Existe a história que habita os livros didáticos, mas também existem aquelas que contamos para nós mesmos, para as próximas gerações e que ressignificamos. Elas podem coexistir, desde que fique claro que aos fatos não há alternativas, apenas mudanças que podemos fazer daqui em diante.
Feliz ano novo. Feliz Brasil novo.
adorei!
Gostei demais desse texto, parabéns