Não me considero uma pessoa nostálgica, não tenho pira com viagem no tempo, mas do nada bate aquela vontade de vivenciar, de novo, algo pela primeira vez. De estar lá novamente quando eu embarcasse naquele trem, quando eu desse play naquela música, quando eu conhecesse alguém – aqueles momentos que fazem uma vida, que definem quem viríamos a ser um tempo depois. Revisitar experiências com o frescor da estreia, porém com a bagagem de quem retorna do futuro pra avisar: presta atenção. Isso vai mudar a sua vida.
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Imagina só assistir O Poderoso Chefão do zero? Sobe a música, cerra-se a porta e lá está você a sós numa reunião com Don Corleone. Sem recitar as frases já batidas, só se deixando levar pelas extravagâncias, pelas emboscadas. Deixa a arma, leva o cannoli, descobre que fulano foi nadar com os peixes, encontra a cabeça de cavalo ensanguentada na cama. Uma espécie de Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças, uma remoção cirúrgica de memórias que são construídas de novo.
Todo esse papo me veio em mente ao ver o encantamento das pessoas em suas primeiras experiências na Flip. A Festa Literária Internacional de Paraty voltou, em pleno novembro, e eu tinha reserva de AirBnb, malas quase prontas, mas também tinha uma criança gripada e uma previsão de chuva. Não de garoa, mas de granizo. Me imaginei tentando correr com Flora, bolsa de fralda e guarda chuvas pelas ruas de pedra de Paraty embaixo de pedrinhas caindo do céu. Desisti. Me restou acompanhar os relatos de quem foi e dava pra sentir, nos posts no Instagram, a intensidade do prazer de vivenciar aquele lugar nos dias em que cada rua, casa, praça e igreja respiram literatura.
Me lembrei da minha primeira Flip, em 2012. Não teve glamour, teve um grupo de universitários apertados em um Ford Ka perdidos na estrada em uma era pré-Waze. Fomos parar em Belford Roxo em altas horas da noite antes de conseguirmos achar o rumo para a Costa Verde. Chegando no hostel, descobrimos que o quarto era na verdade uma garagem com duas beliches, num espaço tão apertado que, para alguém mexer na mala, os outros tinham de sair do cômodo. O banheiro, que seria só nosso, era coletivo e com uma janela que dava direto pra rua. Mas tudo bem, éramos jovens empolgados.
A cidade compensou qualquer perrengue. Paraty tem 50 mil habitantes, mas no auge de um sábado de Flip, essa população deve quase dobrar. As ruas se enchem de turistas, autores, artesanato, carrinhos de doces, trovadores. Os livros pendem das árvores, como frutos que são. As casas têm portas abertas e, lá dentro, um mundo de possibilidades. À noite, um brilho diferente toma conta do lugar. As cachaçarias borbulham, os restaurantes e cafés caros têm filas na porta e os barcos, com seus passeios poéticos, circulam pelo rio. Você paira nesse mundo paralelo onde o Brasil lê, tem poder aquisitivo para tal e o maior problema é escolher qual mesa assistir e qual mesa perder.
Encontrei autores que amava e conheci outros tantos que passei a admirar. Assisti a debates enriquecedores, tirei muitas fotos. Voltei pra casa mais rica e mais pobre, por motivos óbvios. E voltei. E voltei de novo. A cada nova ida à Flip, saio mais leve, apesar da bagagem cheia de livros. Associo as idas à festa com esses raros momentos idílicos, tão raros pra mim nesses 10 anos. Flanar pelas ruas sem destino certo, sem ingresso pra nenhuma tenda badalada e ainda assim encontrar experiências instigantes a cada esquina. Banhar os pés na piscina de um hotel, com as mãos mergulhadas em alguma leitura sem pressa ou propósito.
Daí a vontade de reviver. Melhor ainda: voltar no tempo com direito a despachar bagagem, levando todo o conhecimento adquirido até aqui. Rever o filme, mas com mais contexto cinematográfico. Reviver apenas os primeiros beijos que valem a pena. Revisitar apenas os museus que valem o ingresso. Mas existe também beleza na repetição. Num plot twist nada divertido, este texto que você está lendo agora está sendo escrito pela segunda vez. A primeira versão foi perdida num erro bizarro de sincronização que até agora não compreendi.
Mas a vida não é Como Se Fosse a Primeira Vez, Brilho Eterno e certamente não é nenhum Dia da Marmota – ainda bem. Se existe uma lição em histórias que envolvem viagem no tempo é que sempre. Dá. Ruim. Não volte, não mexa em nenhum fio de cabelo. Numa brincadeira dessas, Marty McFly quase acabou beijando a mãe. Claire Fraser tá até hoje num loop de desgraça, doença, prisão, estupros e experiências de quase morte só porque ela ficou apaixonada por um escocês bonitão. Quer dizer, tudo tem limite.
O único caminho é pra frente. O que não significa que não teremos outras primeiras vezes marcantes só porque ficamos cínicos estamos mais experientes. Nunca fui à Flip com uma criança pequena, nunca presenciei a festa pelos olhos de um serzinho de dois anos. Nunca vivi o que vivi pela ótica de quem sou hoje, com a perspectiva que os corres do dia a dia me proporcionaram. Dá pra encarar cada amanhecer como um reset, como o Windows reiniciando depois de instalar as atualizações do dia anterior. Certamente mais lento, ainda cheio de bugs, mas com a chance de ser um pouco melhor que antes.
Talvez o desejo de voltar ao passado seja um mero reflexo do nosso próprio acerto de contas com o tempo. A balzaquiana classe média está neste momento em terapia, procriando ou ambos. O pós-jovem está vendo os pais envelhecendo enquanto observa seus direitos básicos dando tchau na esquina. Os filhos, próprios ou alheios, se tornam símbolos de um recomeço e de uma fase da vida em que os problemas inexistem, os boletos não chegam e o noticiário não importa.
Mas fazer as pazes com a passagem do tempo é aceitar, também, a sua agência diante disso tudo. Fazer escolhas e entender que, lá na frente, elas vão deixar alguma marca, nem que seja pela sua insignificância. Que nem todo momento eureka tem uma luzinha no topo da cabeça, que nem toda virada de página se pronuncia. Que tem momentos que a gente só vai entender mesmo daqui a um tempo, quando aquela música já estiver entranhada em você, quando conhecer uma pessoa já tiver mudado o curso da sua existência.
Há sempre a opção de revisitar Vito Corleone, ele é eterno. Dá pra rever O Poderoso Chefão com novos olhos, porque todos os dias os olhos são novos – inclusive, no meu caso, um pouco mais míopes que no anterior. Com boa vontade, até a Parte 3 ganha nova perspectiva. Nunca defenderei a escolha de Sofia, mas jamais deixarei de defender a Parte 3, então me deixa.
Nós é que não somos eternos, e que bom. Não vejo a hora de vivenciar a Flip 2023 pela primeira vez.
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Imagina só... a primeira vez?
A Flip é mágica e reviver isso com vc tb