Imagina só... o hambúrguer de miojo doce com esfiha?
Todo dia um malandro e um otário saem de casa.
A essa altura do campeonato, todo mundo sabe que comida de pacotinho não faz bem pra saúde. Mas isso não muda o fato de que ela é prática e, muitas vezes, construída pra atiçar nossas papilas gustativas exatamente no ponto G. Por isso você não consegue parar de tirar as “batatas” fritas daquele pacotinho azul com uma língua na frente. É, literalmente, mais forte que você.
Mas não há desculpa que explique a existência do macarrão instantâneo de beijinho. Ou do hambúrguer de esfiha daquela rede famosa. É bonito fora das fotos publicitárias? Não. Parece gostoso? Nem de longe. Aliás, a julgar pela ojeriza generalizada que se tornou a timeline do Twitter nos dias em que essas novidades vieram à tona, a maioria das pessoas concordaria que elas são é bem nojentas, isso sim.
Nada disso impediu, é claro, que a gente quisesse experimentar. O macarrão doce eu nem vi por aí, o hambúrguer com esfiha também não tá ao meu alcance pois na minha cidade nem existe o tal restaurante árabe de franquias. Porém, foi só ver a foto que pensei: horrível, me vê dois. Porque a gente é atraído pelo bizarro, pelo inédito, pela possibilidade remota de que… vai que é bom?
Mas não é. Nunca é. O refrigerante de sabor esquisito que é lançado por tempo limitado é apenas mais uma estratégia da indústria alimentícia pra te fazer acreditar que precisa comprar, e logo, uma latinha. Mesmo que não compre nunca mais, porque o sabor é péssimo e simplesmente não vale o risco de câncer. E você segue com a vida, até o próximo lançamento ficar te encarando na fila do caixa do supermercado.
Falando assim, parece que a gente não tem poder de escolha. Não só temos, como também temos responsabilidade diante do que colocamos no nosso corpo - tenho lugar de fala, pois sinto cada má escolha feita nos últimos meses no meu próprio corpo. Mas precisamos admitir: o jogo não é justo, não existe fair play. A gente chega com a fome e a indústria da comida de pacotinho chega com milhões investidos em pesquisas pra descobrir o ponto exato de prazer do nosso cérebro pra todo tipo de alimento, mesmo que para isso seja necessário sacrificar sabor real, saúde e a própria comida. Ou você acha que quando compra a tal batata chips de pacotinho ou latinha, que está de fato comendo batata?
Pão integral só precisa de uma quantidade ínfima de farinha integral pra ser considerado da categoria. O chocolate não precisa de quase nada de cacau pra passar no teste. Já tentou ler um rótulo de produto que jura não ter açúcar, apenas para admitir, na lista de ingredientes, que usa açúcar com outro nome? Bem vindo ao clube dos otários.
Acho mais saudável a gente admitir, logo, que é refém. De um lado, tem um negócio multibilionário que lucra com a nossa necessidade de estímulo, falta de tempo, carência emocional; e, do outro, a indústria do emagrecimento e do nutricionismo, que te faz achar que não pode pisar fora da linha, que tem que pesar a marmita todo santo dia, dividir calorias e multiplicar por nutrientes, enquanto separa as pílulas de suplemento e compara o prato com o gráfico das porções de carboidratos, proteínas. Virou tudo uma grande bagunça.
Seria tranquilo se comer fosse só um hobby, uma atividade qualquer que não ocupa três, quatro, cinco momentos importantes do nosso dia. Mas considerando a importância que tem, parece que a gente aceitou o papel de otário, porque viver em negação é pior. Já reparou no seu carrinho de mercado, no das pessoas à sua volta? Da mãe de quatro crianças até a musa fitness, não tem um que escapa à comida de caixinha. A gente comprou a ideia de que estamos ganhando tempo e até dinheiro, considerando que é muito mais caro fazer uma lasanha do zero do que a congelada, e você já parou pra ver o preço do gás de cozinha? Tenha dó.
Não tô aqui pra problematizar a lasanha e o hambúrguer, deus me dibre. Esse é o tipo de comida que pode não fazer bem pra cintura, mas que soma em vários outros quesitos: prazer e socialização, por exemplo. Mas numa época em que a gente, ao invés de escolher as próprias bananas, digita no campo de observação do iFood “mais madura” ou “mais verde”, fica difícil achar um caminho de volta pra comer bem, sentir sabor, se encantar com o que é da estação.
Eu financio essa indústria, tanto quanto qualquer um. Não me escapou a ironia de ler “Sal, açúcar, gordura”, do Michael Moss, e ficar com uma baita vontade de comer pizza, sorvete, pudim, batatinha frita depois. Literalmente minutos depois do cara provar pra mim, por A mais B, que eu estava sendo feita de idiota. “Todo dia um malandro e um otário saem de casa”, é o que ele dizia (algo assim, talvez eu esteja parafraseando).
Vou traduzir um trecho que achei no Goodreads, ó:
“Inevitavelmente, os fabricantes de comida processada argumentam que eles nos permitiram nos tornarmos as pessoas que queremos ser, rápidas e ocupadas, não mais escravas do fogão. Mas nas suas mãos, o sal, açúcar e gordura que têm usado para impulsionar essa transformação social não são nutrientes, e sim armas - armas que eles empregam, certamente, para derrotar seus competidores, mas também para nos fazer voltar para mais”.
O autor é um jornalista que sempre cobriu, no New York Times, temas relacionados à indústria da comida. Ele conhece fontes de confiança dentro das mais variadas e ricas empresas de alimentos, tem acesso a documentos confidenciais, estudos e sabe do que tá falando. Mas que bateu uma vontade de comer um bloco inteiro de queijo amarelo, isso bateu. Porque já chegamos ao ponto de condicionamento de um hábito que parece impossível de quebrar. Somos todos zé droguinha querendo aquele pozinho - o glutamato monossódico, o açúcar. Depende do que te dá um barato.
Mais do Michael Moss:
“Algumas das maiores companhias agora estão usando exames de imagem do cérebro para estudar como reagimos neurologicamente a certas comidas, especialmente ao açúcar. Eles descobriram que o cérebro se ilumina com o açúcar do mesmo modo que reage à cocaína”.
Pelo visto existe toda uma explicação científica do que porquê a gente ridiculariza uma marca e depois compra dela, nem que seja só pra postar react com cara de nojo no TikTok. Tá sabendo que, pra cada estudo que mostra o perigo dos ultraprocessados, um consórcio de empresas “pequenas” - tipo aquela lá do refrigerante de cola, e aquela suíça que vende chocolate e cereais - banca experimentos que tentam provar o contrário? O tanto que essa galera emprega de dinheiro em anúncios pra dizer que atividades físicas são importantes não tá no gibi. Tudo pra dizer que você pode tomar sim aquela bebida cheia de açúcar, desde que poste #hojetápago direto da academia.
Não há newsletter que aguente o peso desse assunto, então vou deixar aqui só a pontinha do iceberg, que me incomoda diariamente. E é importante que incomode, até que a gente consiga mudar os nossos hábitos, por bem ou por mal. A idade chega, o diabetes também. Daqui a uns anos, carne será uma iguaria cara e rara, considerando o nível de estrago que estamos fazendo no planeta. Pensar localmente e sazonalmente será uma necessidade. Escolher melhor será indispensável.
Tudo isso vem habitando muito meus pensamentos, porque agora estou ensinando um ser humaninho a se alimentar. Flora tem dois anos e meio, já passou pelas principais fases da introdução alimentar. Hoje pode comer de tudo, com moderação. Na páscoa desse ano, ela experimentou chocolate. E cuspiu. Sem a menor cerimônia. E ainda fez careta. Bolo de aniversário, docinho? Põe pra fora na hora. Porque não provou açúcar pelos dois primeiros anos, não está acostumada com essa bomba de pó branco que a gente aceitou a acrescentar nos alimentos como se não fosse nada demais.
Isso me provou o óbvio: hábito, paladar, gosto é tudo questão de construção. Dá pra voltar a sentir o sabor dos alimentos sem estarem mascarados por mil aditivos. Dá pra saber o que tem no nosso prato, dá pra pronunciar cada ingrediente sem tropeçar nas sílabas e número dos corantes.
Por isso que o hambúrguer de esfiha e o macarrão instantâneo doce me incomodaram tanto. A gente ri, mas no fundo eles escancaram um problema bem mais profundo, porque tem tantas famílias dependentes desses alimentos, inclusive na minha própria casa. Entram aí questões de privilégio, de acesso numa época em que cada centavo faz diferença, em que as pessoas estão vendendo osso, pele de frango - e tem um monte de gente comprando, simplesmente porque precisa.
Mas a maioria dos brasileiros ainda consegue fazer escolhas. As noções de que comer bem é caro, de que cozinhar dá trabalho, que pedir delivery é mais rápido estão tão entranhadas no imaginário coletivo que é difícil sair desse ciclo. Vale muito o questionamento em torno do que comemos, porque e quem prepara diariamente nossas refeições; se a gente sabe a procedência do tanto de coisa que põe pra dentro do nosso corpo; e o que pode ser feito pra mudar, não só em casa, mas nos locais de trabalho, nas escolas. Continuo acreditando nisso porque comida é mais que alimento. É afeto, é cuidado.
Michael Moss jogou a bola pra gente.
“Eles podem ter sal, açúcar e gordura do seu lado, mas nós, em última análise, temos o poder de fazer escolhas. No fim das contas, nós decidimos o que comprar. Nós decidimos o quanto comer.”
Imagina só… se a gente volta a se reconectar com o que nos nutre e satisfaz? Seria transformador.
Realmente é muito bom quando a gente chega no ponto de fazermos escolhas conscientes sobre o que vai nos nutrir -- e isso é tão simbólico, vale pra tantas aspectos da nossa vida.
Nath, já que vc tá nessa vibe, dá uma escutada no episódio 'Miojo, o mestre dos disfarces', do podcast Prato Cheio. Toca muito em várias coisinhas que vc comentou no texto, e deixa a gente chocada em como ainda existe desinformação quando o assunto é comida.