O tempo das coisas é algo que me desorienta, me desconcerta. Não sei lidar com a resignação dos que simplesmente aceitam que tudo tem sua hora, momento, razão, circunstância. Acho lindo quem fez as pazes com o "fazer o quê, Deus não quis ainda", quem acha conforto no "não sei, só sei que foi assim".
Não sei se nasci a nóia do controle - minha versão brasuca pra control freak - ou se tornei-me (BEAUVOIR, Simone). Fato é que abrir mão das rédeas me dói e isso atravessa meu maternar todos os dias. Atravessa não, melhor: atropela. Me faz aceitar, a duras penas, que existe disciplina, rotina, cuidado, educação positiva, etc. Mas não existe determinar a hora que a criança vai dormir, ter fome, respirar. Porque há fora de mim esse outro ser, inteiro, dono de si, que nada tem a ver com o que eu tento resolver na terapia toda semana. As nóias do controle saem caro, não recomendo.
Li num livro uma vez que flexibilidade e rigidez são como duas margens do mesmo rio. O desafio diário é se manter navegando ali, buscando algum tipo de equilíbrio, sem se aproximar muito de nenhum dos dois extremos. Penso que dentro dessa metáfora, os remos são ferramentas emocionais que a gente vai desenvolvendo pra se sustentar nessa trajetória. Não é que existam caminhos certos ou errados nesse navegar. É que o caminho do meio exige preparo, dedicação, muito muque emocional. E tem hora que o barco pende pra um lado mesmo.
Não duvido que exista, sim, o tempo certo das coisas. Que às vezes não estamos prontos para aquilo que nós mesmos queremos. Aprendi isso relativamente cedo. Tentava ler Cem Anos de Solidão desde os 12 anos (!). Tentei de novo aos 16. Só lá pelos 20 é que fui ler o livro inteiro e entender que não é que García Márquez não fosse bom - de nada, Gabo. Era que García Márquez exigia de mim peito aberto e coração pronto pra conhecer os Buendía. Se eu tivesse insistido nessa e ido até o fim aos 12, teria odiado Cem Anos de Solidão, com toda a arrogância de uma adolescente. Ainda bem que esperei.
Não é a espera que me vira do avesso. É o não saber. A vida adulta dá uma ilusão de poder pra gente. Bem limitado, é verdade. São momentos em que você se permite comer a sobremesa antes do almoço, ver só mais um episódio daquela série, parcelar aquela viagem porque você merece. Mas existe TANTO que não está sob o nosso controle que, se você parar pra pensar, o mero ato de viver é uma prova cabal da nossa teimosia em continuar existindo.
Talvez seja coisa de fatalistas extremos, mas pensar no pior cenário possível vira hábito quando você se acostuma. Alguns de nós treinam a vida inteira pra isso, tão acostumados que estão às rasteiras. Um pai ausente, uma morte na família, uma mudança repentina, um fim de relacionamento e pronto, você "cria casca". Sobe uns muros aqui e ali, vive na ilusão do estar pronto, não ser pego de surpresa, não se deixar sucumbir. É exaustivo e improducente, eu sei.
A tal da hora certa me parece mais uma daquelas coisas que a gente fala pra si mesmo porque quer acreditar. Porque Deus não quis ainda - afinal, por que ele não ia querer que meu familiar saísse do hospital? Não fui promovido porque ainda preciso mostrar mais eficiência, investir naquele MBA, fazer mais umas horas extras. É uma forma de entregar pro universo a nossa parcela de responsabilidade e culpa diante das circunstâncias.
Mas e aquela história de “Deus ajuda a quem cedo madruga”? E o que dizer de “quem sabe faz a hora, não espera acontecer”? São sinais opostos que deixam a gente rodando atrás do próprio rabo - um gif do urso do Pica Pau da vida real. Porque o do desenho, a essa altura do campeonato, já virou NFT.
Teve uma vez que minha mãe fez uma viagem sem mim (a ousadia!). Era meu aniversário de 9 anos, mas ela tinha que levar seus alunos formandos a um passeio em Ouro Preto, algo que eles pagaram vendendo brigadeiro o ano inteiro. Minha mãe provavelmente preferia ficar comigo no meu aniversário a ter que trabalhar num sábado, mas isso não mudou nada os planos. E não dava pra me levar junto, o ônibus estava cheio.
Anos mais tarde, quando ela se aposentou, usou parte do dinheiro do fundo de garantia pra comprar uma excursão por várias cidades históricas de Minas - e dessa vez me levou. Fomos não só a Ouro Preto, mas também Mariana, Tiradentes, Congonhas, Belo Horizonte, Sete Lagoas. No fim da viagem, ela disse: “hoje você aproveitou muito mais o passeio do que aos 9 anos. Naquela época você não sabia metade do que sabe agora”. Minha resposta pra ela foi que a Nathália de 9 anos teria se realizado muito mais de estar ali, entre alunos mais velhos, toda orgulhosa de ver a minha mãe liderando um passeio importante pra eles. E que estar naquelas igrejas e museus poderia até ter afetado a minha escolha de curso, sabe-se lá. Sou super a favor de voltar a lugares onde já estivemos e até rever filmes, por exemplo, para olhar tudo com novas perspectivas.
A gente fala das coisas como se houvesse só uma possibilidade, uma hora pra viver, morrer, procriar, escolher profissão. A verdade é que tudo se renova diariamente, até a nossa própria visão da passagem do tempo. Lembra quando você era criança e queria ser grande? Agora você provavelmente já está como eu: tendo que pensar duas vezes pra lembrar da própria idade.
Eu sempre fui a pessoa que não tem tempo pra nada. A vontade de fazer tudo me oprime desde sempre - eu tinha FOMO antes de ser cool (também não recomendo). Hoje, mãe de uma filha, eu noto o quanto eu tinha tempo sobrando, na real; e que dificilmente teria condições físicas, mentais, emocionais de lidar com uma segunda criança. Eu virei o tipo de gente que olha alguém fazendo uma massa folhada do zero na internet e pensa: “certamente não tem filhos”. Ou, se tem, eu logo penso, “ah, mas não tem 2 anos, como a minha”. Se alguém com mais de um filho consegue fazer coisas - qualquer coisa -, eu bugo.
Recentemente, algumas newsletters que acompanho aqui no Substack vêm tocando no assunto da escrita por parte de mães. Se mães escritoras existem, onde vivem, do que se alimentam, etc. Não deixo de notar a ironia em ter romantizado a vida de escritor desde sempre, ter tentado ser uma e fracassado - e voltar a buscar refúgio na escrita justo quando o tempo para isso anda mais escasso que nunca.
Porque se transformar em palavras custa tempo, disponibilidade intelectual e emocional. Comecei a prática de marinar minhas frases, cozinhar em banho maria sem pressa. Anoto uma ideia no caderninho, levo um período pra amadurecer na cabeça, começo a rascunhar um texto e… não publico. Deixo quieto por dias a fio, volto a ler, edito aqui e ali. Mais um descanso. Foi um processo libertador sair do piloto automático, de bater meta, de honrar os novos assinantes (bem vindos!), de aproveitar que deu pra escrever alguma coisa e bater cartão na internet. Escolho ignorar o tempo certo, o calendário de publicações, expectativas minhas e alheias.
Essa semana, na academia, o professor vestia uma camisa escrito “Quem corre é mais feliz”. Olhei para o tempo na esteira, não tinha dado nem dois minutos num trote leve, mas eu já colocava o coração pela boca. Pensei com meus botões: ufa. Então quer dizer que a sensação de que você vai morrer a qualquer momento passa eventualmente? É só esperar - e continuar correndo, no seu ritmo.
Talvez um dia eu tenha meu momento eureka bem ali, no meio do aeróbico. “Olha, não tô morrendo mais, que coisa”. É possível que esse momento nunca chegue, ou ainda, que chegue amanhã. Existe beleza no não saber, afinal. Agora imagina só convencer a nóia do controle disso? Quase impossível.
- Dicas da vez
A Carolina Ruhman Sandler escreveu um verdadeiro manifesto sobre abandonar livros que eu ainda quero aprender mais a colocar em prática. Porque alguns livros são Cem Anos de Solidão, mas muitos não chegam nem perto.
Entrevistar Jorge Drexler é sempre uma aula. Aqui está a que ele deu pra mim.
Cara, eu não sei porque diabos eu só li esse texto agora (ou talvez seja pq talvez não estivesse pronto), mas só queria dizer que:
- Me identifico MUITO com tudo (exceto com a óbvia parte de que não sou nem mulher, nem mãe).
- Sempre vou lembrar que sou teu fã e quando crescer quero escrever igual a você.
- MUITO MUITO MUITO obrigado por ter escrito isso. Para alguém que se identifica é um grande alento.
Aiii amei a edição. E obrigada pela indicação 😄❤️