Não sou uma pessoa particularmente viajada. Nunca saí do sudeste do Brasil, dei um pulo na Argentina, EUA, Inglaterra, França, Escócia. Alguns privilégios, algumas dívidas contraídas no processo - pacote básico do brasileiro classe média.
Em cada lugar onde passo, troco compras por experiências. E, com certa frequência, troco experiências por comidas. Não me arrependo. Nunca volto pra casa com a mala cheia de roupas e eletrônicos, mas escolho algo que me traga lembranças doces daquele lugar. Uma caneca, uma caneta de museu, um livro. Já me basta.
Abro algumas cópias na estante, tá lá o carimbo da Shakespeare & Company. Abro um caderno, lembro de comprá-lo bem suada na lojinha de um Arco do Triunfo com elevador quebrado. Uso um postal adquirido na Pinacoteca de São Paulo como marcador de livro.
As lembranças ainda me povoam. Os sabores me habitam. Lá pelo terceiro dia de viagem, já troco ingresso de museu por um almoço mais completo e demorado, sem dó nem piedade. Adoro visitar supermercados e ver rótulos quase totalmente desconhecidos. Chego em casa cheia de temperos, caixas de biscoitos, chocolates, fotos de cada prato consumido. De vez em quando elas aparecem na lembrança de um post do Instagram, nas imagens aniversariando no Google Fotos, e o sabor volta, como se tivesse sido vivido ontem.
A cada cidade nova, eu me permito entreter a fantasia de morar ali. Como seria pegar aquele metrô todo dia, entrar naqueles bancos, fica na fila dos correios? Antes de ser mãe, parecia quase possível largar tudo e ir viver numa terra estrangeira. Trocar as minhas faixas de pedestre, burocracias, tomadas de três pinos por outras.
Semanas atrás, fiz o caminho inverso. Voltei à minha cidade natal depois de mais de dez anos de distância. Construí toda uma vida em Petrópolis, região serrana do Rio, e não havia necessidade de voltar a Leopoldina, na zona da mata mineira. Nem vontade. A cidade onde nasci e vivi os meus primeiros 21 anos continua viva em mim, faz parte de quem sou. Mas também está cheia de memórias ruins, pessoas que me magoaram, lembranças que preferi evitar.
Não me leve a mal. Leopoldina é uma cidade completamente… normal. Mais ou menos 50 mil habitantes, nem muito violenta, nem cara demais pra se viver, sequer feia. Não há muito para fazer, mas também não há muito do que reclamar.
Só não era o lugar pra mim. Nunca foi. Me sentia limitada pelos costumes, pelas expectativas, por tudo que a cidade não podia me oferecer. Não me identificava com a Leopoldina possível pra situação econômica da minha família - sem carro, sem chance de passeios pra além dos limites do município.
Até que agora cá estou eu, adulting, pagando boleto de consórcio, IPVA, reclamando do preço da gasolina. Após quase 10 anos de relacionamento, levei meu marido à minha terra natal. E é uma experiência meio surreal povoar as minhas memórias daquelas praças, sorveterias, restaurantes com Daniel, com nossa filha. Quer dizer então que dá pra ressignificar as dores? Ô louco, meu.
Meu amigo Eduardo, que também é de Leopoldina e mora fora, foi almoçar com a gente e se surpreendeu com a minha vontade de ir turistar no supermercado. De comprar aquela marca de café, um tal doce de leite. Expliquei pra ele que existe um lugar nas minhas lembranças daquela cidade que nenhum trauma ou coração partido pode corromper - e é a memória afetiva das comidas que me mantiveram firme ali. A macarronada da minha avó não existe mais, mas ainda dá pra resgatar aquela sensação gostosa de estar em casa.
É curiosa essa noção de lar. Hoje consigo revisitar um lugar da minha infância e adolescência com distanciamento. Sem esquecer que venho dali, mas ao mesmo tempo feliz que eu entro no carro e venho pra casa que estou fazendo pra mim mesma em outro lugar, escolhido por mim, e estar em paz com isso.
Não resisti pensar na Nathália de uns anos atrás, que não via saída para a falta de horizonte. Será que ela ia encontrar consolo em saber que ia ficar tudo bem? Difícil dizer. Mas a Nathália de hoje consegue olhar pra trás e até apreciar algumas das suas cicatrizes. Elas têm história pra contar.
Hoje, minha filha jantou no prato que era da minha avó. Dona Antônia não deixou herança, mas seus pertences mais valiosos - as panelas - foram divididos, doados, levados embora. Sobrou esse prato que eu escolhi trazer pra casa. Flora adora comer naquela estampa verde. Nem se importa que a porcelana tá meio lascada na borda. No fim da refeição, ela adora comparar quem de nós três limpou mais o fundo do prato. E foi assim que comecei a contar pra ela daquela matriarca turrona, protetora, que pesava a mão demais no óleo, mas fritava um frango como ninguém.
Flora pediu pra ver foto da bisvovó. E é assim que as memórias se perpetuam, os lares se reconstroem em outros lugares, com novos sotaques, mas com as mesmas essências de quem nos trouxe até aqui.
Seguimos tentando atravessar fronteiras, pegar a estrada e descobrir novos destinos. Nem que seja pra dentro de nós mesmos.
que texto lindo, nath! obrigado por compartilhar tanta sensibilidade.