Imagina só... se a gente aprende a dar adeus?
A geração que vai à terapia ainda não sabe lidar com os lutos cotidianos.
Como todo ser humano com um coração, me sinto impactada pelo final de This is Us. Sem spoilers aqui, pode deixar! Mas acho que dá pra dizer com segurança que essa é uma série sobre nossas conexões ao longo da vida, e sobre cada escolha que nos leva do ponto A ao ponto B, do início ao fim. Dizer adeus é difícil demais, e se despedir de personagens que a gente acompanha durante muitos anos é uma espécie de luto. Tudo bem desligar a TV e ir chorar no banho, é o que eu me digo sempre que lembro como fiquei quando disse tchau pra Six Feet Under.
Aliás, ninguém pediu, mas aí vai: meu top 3 séries que mais chorei no episódio final.
Six Feet Under
Jane The Virgin
Parenthood
Notou o padrão? Série de família mexe muito comigo. Traço ene paralelos, apesar de ter pouco em comum com as pessoas que acompanho na tela. Me pego conjecturando como lidaria com uma filha adolescente que começasse a usar drogas, com uma doença inesperada, com tramas e traumas que sequer são meus. Não é sobre martirização, e sim sobre um exercício de empatia. Aí no final de tudo que passamos juntos, as pessoas decidem simplesmente que não vão mais me contar histórias? É uma ruptura, e se tem algo que a gente não sabe fazer direito é compreender o fim das coisas.
Quando é sobre morte, então, simplesmente não tocamos nesse assunto. Ou, quando tocamos, é sob a aura da mística religiosa, do que acontece ou não acontece depois que alguém expira. Tiramos os cadáveres da sala de casa, enterramos ou cremamos, abrimos espaço no guarda-roupas, vida que segue. As mortes violentas que vemos na TV sequer pesam mais, a não ser por alguns familiares revoltados que aparecem no jornal local da hora do almoço. Estamos dessensibilizados, não importa se são inocentes achados por balas perdidas, se é um homem negro com uma doença psiquiátrica assassinado em uma câmara de gás por agentes do estado.
Cada dia tem a sua dose de crueldade e não dá pra absorver todas as dores do mundo - entendo isso também. Mas o nosso distanciamento de alguns assuntos que exigem qualquer mergulho mais profundo, qualquer questionamento sobre quem somos e no que acreditamos, parece pedir demais. Ninguém tem mais energia, tempo, dinheiro pra lidar com as perdas e passar o resto da vida em terapia.
Por isso, adiamos fins. De casamentos, de produtos culturais, de amizades. Quando anunciam o cancelamento de uma série, a gente faz o que? Inunda a emissora de cartas, manda caminhões de margaridas pra evitar o fim de um seriado sobre o fim (dá pra notar que as minhas referências estão meio datadas, né? - sdds, Pushing Daisies). Xinga no Twitter até outra emissora abrir as portas pro programa.
Depois que acaba, começa a cobrar o episódio de reunião. Põe dinheiro no Kickstarter pra financiar o filme que nunca foi feito. Comemora o spin off que foi anunciado pra te obrigar a assinar mais um serviço de streaming. Compra os livros que originaram a história, até o novo que acabou de sair, escrito por um autor convidado depois que o original morreu e ninguém é obrigado a parar a história só por causa desse pormenor.
Por isso que o cancelamento, o divórcio, a morte parecem batalhas perdidas, feridas abertas. Uma pessoa muito importante pra mim me disse uma vez que o casamento, de uns sete anos, não tinha dado certo. E o que eu disse é que, bem, tinha dado certo - por seis anos e meio. Que é natural as pessoas mudarem, se distanciarem, crescerem em direções opostas. O mero ideal de que devemos ser almas gêmeas por uma vida toda é uma pressão desnecessária que pode restringir quem você quer realmente ser, não fossem as expectativas e obrigações, os votos que fez quando era outra pessoa, antes daquele filho, daquele emprego novo, daquela pessoa interessante que surgiu na sua vida, daquela mudança de país.
Falar é fácil, difícil é aceitar. Se o meu casamento acabasse amanhã, eu provavelmente passaria pela mesma negação de mim mesma. Porque não sabemos lidar com o fim. E, se você pensar bem, é cultural. Até hoje, fazer terapia não é apenas artigo de luxo para uma classe média em diante, como segue sendo tabu. Nem acho que precise virar assunto no almoço de domingo, mas fingir que tantos de nós temos feridas abertas que precisam ser reconhecidas, abraçadas, curadas, é tapar o sol com a peneira. Porque o fim vem, de alguma forma. Da juventude, da faculdade, do emprego, da amizade.
A família é o berço, mas pra fora de casa a prática é idêntica. Nas escolas, igrejas, comunidades afins, não há espaço pra finitude. Aliás, depois de ter passado por toda uma vida escolar, eu noto o quanto certas coisas deveriam ser obrigatórias no currículo pra qualquer pessoa que quer viver de forma prática, que quer se preparar pro mundo real.
Já pensou o quão mais fácil sua vida seria se ensinassem na escola a fazer arroz e feijão? A trocar uma resistência de chuveiro, a fazer imposto de renda? As aulas de Filosofia e Estudo Religioso, que existem em algumas grades, deveriam abordar mais abertamente temas como a morte e o luto, pra que mais tarde a gente não se encontre em posição fetal sem saber lidar com a ausência de tanta coisa, de tanta gente.
Talvez em algum país mais desenvolvido, isso já aconteça. Talvez a educação brasileira tenha evoluído alguma coisa desde que me formei no ensino médio (em 2005!). O tanto de gente que vejo falando sobre fazer terapia, análise, sobre autoconhecimento, talvez seja algum indicativo de que estamos no caminho para não ignorar o que sentimos. Hoje esses assuntos têm espaço nas prateleiras das livrarias. Foi uma experiência sem predecedentes ouvir o audiolivro da Chimamanda Ngozi Adichie, "Notas Sobre o Luto", em que narra a avalanche de sentimentos desencadeada pelo falecimento do pai. A gravação com a voz dela deixa tudo mais potente, pessoal.
"O luto é uma forma cruel de aprendizado. Você aprende como ele pode ser pouco suave, raivoso. Aprende como os pêsames podem soar rasos. Aprende quanto do luto tem a ver com palavras, com a derrota das palavras e com a busca das palavras. Por que sinto tanta dor e tanto desconforto nas laterais do corpo? É de tanto chorar, dizem. Não sabia que a gente chorava com os músculos." (catei esse trecho lá do Nota Terapia)
Tem muito que a gente não sabe sobre a vida, sobre si mesmo. E ser Pós-Jovem - como meu amigo pessoal André Felipe de Medeiros batizou essa fase da existência - requer uma constante reavaliação das expectativas frustradas ou realizadas, das perdas e ganhos. Chegar aos 30 e poucos sem ter perdido ninguém, sem ter sido demitido, sem ter tido o coração partido é uma experiência para poucos - e, francamente, é uma existência que vai cobrar muito lá na frente. Aceitar o que não controlamos, se libertar do nosso desejo de onipotência é uma das mais valiosas lições desse período da vida.
Sou lembrada disso constantemente - inclusive agora, quando minha filha de 2 anos veio me chamar pra brincar de massinha, interrompendo meu fluxo de pensamento. A vida urge lá fora, mas também aqui dentro. Encontrar tempo para ambas é um grande desafio. Tem horas que o que a vida quer da gente é coragem - e tem horas que é fazer uma florzinha com uma gosma colorida industrializada para estimular a imaginação de uma criança. Abracemos ambos.
Falando nisso…
Era inevitável: uma hora eu ia querer dar dica de alguma coisa aqui. E hoje, quero recomendar a novíssima newsletter da minha irmã, Gabriela. Gabi é uma pessoa criativa e brilhante, vocês precisam conhecê-la também. Ela vai falar sobre o amadurecimento na fase dos 30 anos.
Agora acabou!
Mas bora continuar a conversa?