No bairro onde moro, tem uma trattoria muito simpática. É cantina italiana, mas arrumadinha o suficiente pra justificar os três cifrões no iFood. Fomos lá hoje, almoçar em família. Todo mundo ao redor encantado vendo Flora, nossa filha, matar um belo prato de espaguete à bolonhesa - pra variar. Pedi um ravioli de ricota que estava muito gostoso, a chuva caindo lá fora e, do lado de dentro, tocando Mariah Carey. Estava tudo certo com o universo.
Exceto o meu prato. Ele tinha dois defeitos indefensáveis: um, acabou rápido demais; e dois, não era o ravioli da dona Nieta. A verdade é que eu procuro, nos menus dos estabelecimentos italianos que encontro por aí, reproduzir a sensação de descoberta e maravilhamento ao colocar aquela primeira garfada de massa na boca, tantos anos atrás.
Eu devia ter uns 8. Morava em Leopoldina, zona da mata mineira, aquela típica cidade de interior onde a vizinhança se conhece e as crianças brincam na rua. Foi assim que conheci Homayra, que viria a se tornar uma amiga inseparável - a não ser pelo tempo, que fez a gente crescer, mudar de estado e tudo mais que acontece com amizades de infância.
Dona Nieta criou a Homayra, de certa forma. Houve uma época em que ela morou com a avó na rua perpendicular à minha e vivia lá em casa, brincando, almoçando, tomando banho, dormindo. Em frente tinha um condomínio cheio de crianças, e ali na rua entre a minha casa e os prédios foi onde a gente ralou os joelhos, correu até perder o fôlego, construiu uma rede imaginária por onde passava a bola, a peteca. As férias pareciam durar eternamente, e os finais de semana pareciam férias.
Já eu ia bem menos à casa da avó da Homayra. Minha mãe não gostava muito da ideia de eu dar trabalho pra outras famílias e se sentia mais confortável comigo sempre por perto - o que eu preferia não vinha ao caso. Mas eu ia à casa marrom e bege na rua Sete de Setembro o suficiente pra ficar curiosa pela cozinha diferente que tinha lá. A construção era antiga, mas ampla. Tinha janelas enormes que abririam para a rua, não fosse o hábito de estarem quase sempre fechadas. Sabe como é cidade de interior, todo mundo comenta, privacidade é bem precioso. E dona Nieta era bem discreta.
Ela era avó paterna da minha amiga e, além de ser alguém mais velha, exercia uma espécie de autoridade não verbalizada. Era séria, professoral, mas sem ser ríspida. Não sei bem o que ela fazia antes de se aposentar, mas o fato é que naquela época, dona Nieta fazia massas frescas para fora. A cozinha tinha uma grande bancada de granito onde eram acoplados equipamentos para esticar massa. Pelos cantos da cozinha, alguns varais para secar espaguete de diferentes tamanhos e espessuras. Na área externa, bandejas de muitas cascas de ovos aguardavam a secagem para serem trituradas.
As massas da dona Nieta eram conhecidas em Leopoldina. Minha família, mesmo, nunca tinha comprado, mas minha mãe dissera que eram respeitadas e concorridas. A fabricação era feita sob encomenda, por isso não costumava ter massa cozinhando quando eu ia lá. Elas tinham donas, que batiam na porta de vez em quando para buscar e pagar. Eu até comia satisfeita o pão com manteiga, o Nescau geladinho, mas sempre fiquei de olho naquelas massas secando ali, tão perto. Eu nunca havia parado pra pensar que aquele macarrão que a minha família comprava no pacote econômico podia ter outro cheiro, outro formato e, quem sabe, até outro gosto.
Nada contra a macarronada da minha avó, veja bem. Até hoje eu lembro da dona Antônia quando abro uma lata de Elefante. Todo domingo era dia de mesa farta, frango frito, aquele macarrão até brilhando de gordura, um tutu cheiroso com muito ovo cozido por cima, arroz branco soltinho. Mas se tem algo que fisga o imaginário de uma criança é o que ela não tem.
Até que um dia, o impensável aconteceu: fui almoçar na casa da Homayra e tinha… ravioli! Sobrou? Dona Nieta fez pra nós? Nunca saberei. O fato é que ela jogou um molho bem vermelho por cima e serviu aqueles travesseirinhos de massa fumegante, recheada de carne. Quando coloquei na boca, descobri que havia todo um mundo além da mesa gostosa, porém previsível, da minha casa. Isso iria mudar a minha vida, e eu nem sabia.
Aos 8 anos, a gente não sabe de muita coisa, mas lembra de tanto. Crescer numa cidade pequena pode ter muitas vantagens, porém os horizontes se tornam limitados rapidamente. Uma comida diferente, feita em casa, com amor e dedicação, foi o suficiente pra me fazer querer mais, pra me atiçar a ficar nas pontas dos pés e tentar ver o que tinha lá fora.
Não tenho uma foto desse dia, nem da dona Nieta. Não muito tempo depois, ela teve leucemia e faleceu. Homayra foi viver em outras cidades e estados, eu também. Mas, de certa forma, retorno à Nathália de 8 anos sentada naquela mesa redonda da cozinha da avó da minha amiga, a cada garfada de ravioli. Faço o pedido na esperança de que seja um novo momento eureka, mas a verdade é que sei que jamais será. Dona Nieta se foi, a minha versão mirim vive apenas nas lembranças. O que resta é a memória afetiva, a nostalgia. Talvez de um tempo em que os boletos não chegavam no meu nome, ou da época em que eu enchia a boca de massa sem pensar se ia engordar ou não. Bons tempos.
Agora, imagina só se a gente não come carboidrato? Cruzes.
Me emocionei