Deve ter chegado até você a notícia de que o Reino Unido começará a testar a semana de quatro dias úteis. É um experimento limitado, para pouco mais de 3 mil funcionários, mas já acendeu uma chama de esperança do lado de cá do oceano. Se você não deseja ter mais tempo livre, você é privilegiado sim. Tá todo mundo cansado ou a fim de tocar outros projetos, passar mais tempo com os filhos ou os amigos, fazer aquela hidratação no cabelo. Aí me peguei pensando no que eu faria, caso não precisasse trabalhar toda sexta ou segunda-feira. Como lidar com tantas possibilidades?
Não é de hoje que eu sonho com essa realização, veja bem.
Mas a verdade é que eu provavelmente idealizaria o tempo livre, planejaria “ene” realizações - apenas para ficar paralisada pela ansiedade e passar ainda mais tempo descendo o feed do Instagram.
Sei que o Reino Unido não é o primeiro a realizar um experimento do tipo, e até onde pude me inteirar, os países que já possuem uma iniciativa parecida têm, digamos, menos problemas que o Brasil. Dá pra pensar em dar folga pra galera quando você não tem tanta gente passando fome. Não estou me iludindo, sei que estamos longe disso.
Me lembro de ler, há alguns anos, uma matéria na Superinteressante que já imaginava a possibilidade de mais um dia de folga semanal. E eles cortaram meu barato, sem dó nem piedade. As implicações iam do aumento de peso e alcoolismo (considerando que o consumo de bebidas e comidas gordurosas sobe muito nos fins de semana) até mais mortes, já que tem mais gente na rua se divertindo, mais oportunidades para assaltos, acidentes de trânsito, atropelamentos. Só no Brasil seriam mais 4 mil mortos apenas por essa folguinha semanal extra. Aí quando você pensa assim, ter mais um dia pra ir ao cinema parece uma grande bobagem.
No fim das contas, a gente não ganharia mais tempo, e sim a possibilidade de usá-lo de outra forma. Mas a galera da ~meritocracia tá cantando a bola há tempos de que é só você se esforçar pra conseguir o que almeja. Se você acha que não tem tempo pra se dedicar à família, basta tirar esse tempo de algum outro lugar. A turma do 5 AM Club não contempla, obviamente, quem já acorda às 4h pra pegar três conduções a caminho do trabalho. E certamente não leva em conta as mulheres em jornada tripla - casa, trabalho, crianças.
É óbvio que não dá pra esticar o tempo - só temos 24h por dia, 7 dias por semana. A geração burnout não vai fazer o calendário mudar apenas com a força do pensamento. O que dá pra mudar é a forma como gastamos o tempo que temos. Aí entram inúmeras questões sociais e políticas e também escolhas pessoais.
Ninguém vai negar que passamos horas em excesso com o celular na mão, e que provavelmente seria mais benéfico usar parte desses momentos pra fazer uma caminhada, ligar pra sua mãe, fazer um trabalho voluntário. Mas pra quem já tá condicionado a descer os feeds infinitos das redes sociais, sentar com o celular um cafezinho pra dar um scroll inofensivo serve como momento de descompressão - mesmo que de lá surjam outras ansiedades, como comparações com os outros, consumismo, depressão ao ler notícias, etc.
Então acabam se misturando aí alguns conceitos conflitantes. A simples noção de aproveitar melhor o tempo que temos coloca a ideia de que é preciso FAZER alguma coisa. Não fazer nada implica tédio ou, pior ainda, o ócio criativo. Porque não dá pra se jogar na rede e ver o tempo passar se você não usar isso pra organizar sua lista de tarefas enquanto ouve aquele disco que tá todo mundo comentando. Não me passa despercebida a ironia de que estou aqui criticando a pressão que nos colocamos para usar o nosso tempo, porém motivada pela possibilidade remota de um dia também ter um fim de semana de três dias pra chamar de meu.
Difícil não sucumbir à ideia de que é preciso fazer mais, sempre. Comprar mais, ficar mais bonita, saudável, feliz, informada. É imperativo investir em autoconhecimento, descobrir seu propósito na vida e ainda ter um projeto paralelo pra tocar à noite, depois que todo mundo for dormir. Tudo, absolutamente, tem que ter intenção, atenção plena. Não estou imune a nada disso, e você provavelmente também não. Estamos todos presos na rodinha do capitalismo, em que o sistema cria o problema de excesso de trabalho e depois ainda nos vende as soluções pra lidar melhor com ele, de opioides a aplicativos de meditação.
Tempo é, paralelamente, o bem mais imaterial e concreto que temos. É, também, uma das grandes provas de que não temos controle sobre tudo. Ele passa, independente de quantas agulhadas de botox você leve e parcele em 12x no cartão (mas é sem juros, então sem problemas). Não sou do time que acha possível escolher o resultado de tudo a partir das nossas ações, porém não vou me isentar da responsabilidade da forma como uso cada minuto precioso. Depois dos 30, tudo fica mais palpável. Não estou falando da flacidez, e sim do fato inegável de que começamos a sentir as perdas e ausências.
Por isso, acho que dá pra começar a implementar a semana de quatro dias por nossa conta e risco. Não serei ingênua de achar que podemos fazer melhores escolhas enquanto estamos soterrados pela rotina e tentando matar três leões por dia. Mas quero acreditar que conseguimos trocar parte daquele tempo num microblog pra escrever algo mais aprofundado, como estou tentando fazer agora. Que podemos usar parte dos minutos num inevitável transporte público não para colocar em dia as newsletters ou uma série, e sim pra olhar pela janela, absorvendo tudo de lindo e horrendo que a nossa cidade pode oferecer. Que a gente pode escolher não trabalhar no projeto paralelo depois de guardar a louça da janta, e sim ir dormir umas horas a mais, apenas porque sim.
Sou totalmente a favor de devotar menos tempo às corporações e mais às realizações pessoais. Sou mais ainda adepta ao conceito de que não existe escolha certa ou errada - com a ressalva de que não prejudique outras pessoas ou seja ilegal. Morando no Reino Unido ou no Brasil, muito na vida é uma questão de perspectiva e de prioridades. Tudo bem fazer de tudo um pouco, tudo bem não fazer nada. Gastar cada vez menos energia e espaço mental se culpando ou se pressionando já me parece um excelente uso da bênção do tempo. Porque imagina só ter o privilégio de escolher?
Dica de hoje
Escrevi parte do texto com um episódio da Patrulha Canina de fundo (#vidademãe). Mas outra parte foi ouvindo esse show delicinha do Metronomy no meio de um monte de ossadas no Museu Nacional de História Natural da França, em Paris. O último disco da banda, Small World, é um dos meus favoritos dos últimos tempos, e parece que muita gente não tá dando bola (tudo bem, ninguém é obrigado). Mas vale pra trilha sonora desse dias frios e cinzentos.