Imagina só... ser filha da Lorelai Gilmore?
Esta não é uma newsletter sobre maternidade, mas é escrita por uma mãe.
É curioso como a vida dá voltas. Parece que foi ontem que eu me peguei hipnotizada por um episódio de Gilmore Girls. Descobri passando na Warner numa daquelas reprises intermináveis - lembra quando a gente tinha dia e hora pra ver série? De início, não me agradaram muito aquelas mulheres que falavam excessivamente rápido pra alguém que tinha acabado de começar o curso de inglês - lembra quando a gente ainda saía de casa pra aprender línguas? Pois é.
Depois que entendi que podia usar as falastronas garotas Gilmore para treinar o ouvido, foi fácil me render a Stars Hollow e todos os seus personagens caricatos e carismáticos. Eu era uma recém-adolescente que gostava de livros e sem muitas habilidades sociais, então é claro que me achava “a” Rory da vida real.
Caso você tenha menos de 30 anos, lá vai um resumo: Lorelai e Rory são mãe e filha, respectivamente, que vivem em uma pequena cidade onde todos se conhecem. Lorelai criou Rory sozinha depois de se desentender com os pais ao contar sobre a gravidez na adolescência, e desde então vive separada deles. Porém, quando Rory tem 15 anos, Lorelai retorna à casa dos pais para pedir um empréstimo para a educação da filha. Como condição, a mãe, Emily, exige que filha e neta compareçam à sua casa uma vez por semana para jantares em família. A partir daí começa uma longa caminhada (de sete temporadas e mais um especial de 4 episódios para a Netflix, para ser mais específica), em que três gerações de mulheres Gilmore precisam amadurecer juntas.
Consigo imaginar milhões de garotas adolescentes nos anos 2000 que desejavam secretamente que suas mães fossem uma versão de Lorelai. Ela é bonita, engraçada, mas principalmente, é a melhor amiga da filha. Elas falam sobre meninos, sobre seu gosto musical parecido, sobre fazer um mochilão pela Europa. É claro que existem mães como Lorelai, mas elas ficam ainda mais raras em cidades pequenas do interior de Minas Gerais. Minha mãe, embora também tivesse me criado sem um parceiro e precisasse trabalhar muito para me sustentar, não oferecia a mesma abertura de diálogo.
Passei muito tempo idealizando essa convivência. Chamei minha própria mãe para assistir Gilmore Girls alguns anos depois, em uma das muitas maratonas que fiz. Vimos a série toda, falamos mal da Emily, torcemos pela Lorelai com o Max, depois com o Luke. Mas, como era de se imaginar, simplesmente sentar no sofá junto pra encarar uma tevê não muda a vida de ninguém. Não temos um relacionamento perfeito, mas chegamos a 34 anos de convivência pacífica, sem grandes dramas, sem períodos sem se falar - o que é mais do que Lorelai e Rory podem falar, veja só você.
Corta pra 2022 e cá estou eu, descobrindo como maternar uma menina de 2 anos. Não dá pra traçar paralelos aqui: tenho uma vida mais confortável que a da minha mãe quando engravidou - desde plano de saúde até a visão da mulher e da mãe na sociedade. Sou casada com um parceiro no sentido real da palavra, que pega junto comigo. Tenho pediatra a um WhatsApp de distância, acesso a conteúdo infinito sobre parentalidade que me socorreu em momentos de desespero.
A cada novo marco na vida da minha filha, não consigo não pensar no tanto que caminhamos. Hoje a gente sabe que o cérebro demora uns 20 e poucos anos pra se desenvolver completamente e que não adianta esperar maturidade x de uma criança de tal idade. Que o aleitamento materno prolongado pode prevenir uma quantidade enorme de doenças. Que os saltos de crescimento são surtos de desenvolvimento rápido que fazem qualquer criança (e pai) pirar também.
Quando compro um livro da Elisama Santos pra ler sobre educação não violenta, quando me debruço sobre um livro da Rita Lobo sobre como fazer introdução alimentar com comida de verdade, eu noto a distância que separa a minha geração da atual. Ainda dá pra melhorar, mas os pais hoje fazem terapia, curso e consultoria de tudo que se possa imaginar (e comercializar), simplesmente porque querem ser pessoas melhores para seus filhos.
Não se trata de complexo de Lorelai Gilmore, penso eu. É sobre buscar o caminho do meio termo entre querer ser amigo da cria e tratá-la como carrasco. Existe um equilíbrio aí, e é nessa busca infinita que a gente acaba mimando, traumatizando, estragando a criança - mas não fosse isso, como os psicólogos estariam se sustentando, não é mexmo?
Essa zona cinza é onde mora o respeito, a maturidade emocional, o diálogo. A gente chega lá tateando, se perde pelo caminho, mas continua buscando. E eis que cá estou eu em mais uma maratona de Gilmore Girls. Deixo rolando enquanto lavo louça, dobro roupa, essas coisas. E o que mais me impressiona nessa série depois de tantos anos é a forma como a história, embora estática, continua mudando de acordo com a perspectiva de quem assiste. Eu, que era uma Rory, hoje vejo tudo por um ângulo mais ligado à Lorelai, e vez ou outra me pego defendendo a Emily, num debate geracional de mim comigo mesma.
Talvez seja meramente uma questão de passagem de tempo, de amadurecimento; ou, talvez, eu me identifique mais com a mãe por também ser uma agora. Porém, sinto que os dilemas das garotas Gilmore seguem atuais e universais. Digo isso porque essa semana teve um encontro de mães na escola da minha filha e o resultado foi mulheres de 30, 40, 50 anos se emocionando porque alguém ousou dizer: você também importa. Ser mãe não te define. Você é mais que uma cuidadora alheia e também merece se priorizar. Você não é obrigada a fazer tudo sozinha e tem direito de exigir isso dos seus parceiros.
Parece óbvio, mas não é. Ao mesmo tempo que foi um encontro muito marcado pela força do feminino, ficou claro o quanto temos engasgado aqui dentro. O quanto tá complicado dar conta de criança-marido-casa-faculdade-trabalho-salão de beleza-academia. Não é meramente drama de mãe que tem filho em escola montessoriana gourmet e ainda se acha no direito de reclamar. É mais uma constatação do quanto é exigido e cobrado das mães e o quão pouco os homens assumem sua responsabilidade. E também o quanto as próprias mulheres seguem aceitando migalhas de reconhecimento que nos mantém dentro dos mesmos padrões de cobrança, no mesmo ciclo vicioso ad aeternum.
Esta não é uma newsletter sobre maternidade, mas é escrita por uma mãe. Você tem ou teve uma, conhece outras tantas, é ou pretende ser (também tá de boa se não quiser, viu?). Eu mesma só fui pensar nos pormenores do que é criar um ser humaninho quando decidi fazer um. Não cometa o mesmo erro de pensar que isso não lhe diz respeito. Não pense que pais e crianças não importam pra você, ou só afetam sua vida quando choram no ônibus ou no avião. Bebês e crianças são parte da sociedade, precisam participar dos espaços para aprender a conviver neles. Tenha paciência, estamos todos aprendendo. Eles, a habitar o mundo fora do útero. Os adultos, a ser respeitosos com esse processo.
E, se você conhece uma mãe próxima, o melhor presente é ter um círculo social que sirva de rede de apoio. Ofereça ajuda. Não precisa trocar fralda de cocô, mas levar uma comida fresquinha na porta de uma recém-parida é possível. Não precisa ficar de babá, mas ofereça passar no mercado, na farmácia pra uma mãe de três. Se você tem poder de compra, compre de uma mãe. Se você já vota, eleja mulheres e mães. E, se você tem funcionários e poder de decisão, promova mães a cargos de chefia.
Enquanto a gente continuar na lógica do “quem pariu Mateus que o balance”, seremos uma sociedade que meramente obriga mulheres a seguirem suas gestações para ter suas oportunidades profissionais minguarem, e em alguns casos criarem filhos sem acesso a estímulos, estudos, dignidade socioeconômica de um estado que não se comprometeu com eles para começo de conversa.
Tudo começa com uma sociedade que entende que a luta de uma mãe é a luta de todos. Imagina só… se a gente aprende a ser empático?