Não faz muito tempo, veio na newsletter do Rob Walker, a ótima The Art of Noticing, um prompt criativo: qual era seu “terceiro espaço” na infância ou adolescência? Partindo do pressuposto que a maioria de nós se sente bem vindo na própria casa e na escola, onde mais você tinha a sensação de estar totalmente à vontade, onde sentia que pertencia? O meu terceiro espaço não só entrega idade, como também nem existe mais. Estou falando da locadora.
Talvez você seja jovem demais pra lembrar, então lá vai: uma locadora era um comércio especializado em alugar fitas VHS ou DVDs, geralmente com filmes, shows e séries de TV, por um dia ou um fim de semana. Um DVD ou VHS era uma mídia física onde ficava guardado o conteúdo, protegido por capas plásticas e que requeriam um certo cuidado: não deixar marcas digitais, evitar que mofassem, rebobinar após assistir. Quer dizer, tecnologia neandertal.
Na minha cidade, as principais locadoras ficavam a no máximo cinco minutos a pé da minha casa - o que significava que eu as frequentava sempre. Conhecia o catálogo de todas, colecionava seus cartões fidelidade, sabia de cabeça onde tinha promoção naquele dia. Como o dinheiro sempre foi curto lá em casa, a própria chegada do vídeo cassete e, posteriormente, do tocador de DVD, foi um acontecimento. Todos adquiridos a algumas prestações com o salário de professora da minha mãe, que se esforçava para acompanhar a minha ambição de zerar aquelas prateleiras de filmes.
Recebeu essa newsletter de alguém? Acessou pelo site? Assine gratuitamente para receber edições novas na sua caixa de e-mails.
Num município do interior, onde o cinema é inexistente, a locadora não só é fonte de entretenimento, como é lugar de convivência. O balcão não é apenas espaço de fazer ficha, de devolver a sacola de pano (se você lembra dessas, certamente já tem mais de 30) com as fitas ou discos. É ponto de troca de ideias, de dicas de filmes, de resenhar sobre o jogo da véspera, de comentar o bafafá que teve na vizinhança naquela semana.
Hoje, parece impossível imaginar um lugar assim. Em ano eleitoral, só consigo pensar que seria muito fácil começar uma treta. Mas não quando o maior ponto de discordância era entre quem gostava de Van Damme e de Stallone, entre quem era time Jacob ou Edward.
Atualmente, meu Letterboxd tá às moscas. Mal dou conta de ver minhas séries, todas atrasadas, quem dirá filme. Mas em tempos imemoriais, quando eu não tinha trabalho, filha e casa, minha maior questão era entrar na fila pra alugar Titanic. Era reservar pro fim de semana aquele filme que levou meses pra ir do cinema pro DVD. Era a estratégia de fazer melhor uso da promoção de leve 4/pague 3.
Porque escolher bem fazia toda a diferença em um lugar onde não havia muita opção de entretenimento. Os catálogos de locadoras levavam em conta a quantidade de vezes que um filme tinha potencial de ser alugado pra fazer sentido a aquisição de uma cópia (em geral, cara) junto à distribuidora. Então entre apostar em cinco Homens Aranha e um filme iraniano, era batata que o proprietário escolheria o primeiro. Errado não estava.
Eu era o tipo de adolescente que adoraria ter a opção do filme iraniano, mas me esbaldava nos pipocões. Que queria muito ter tido acesso a Bergman, a Truffaut, mas que nunca reclamou das comédias românticas, dos filmes de ação, dos besteiróis americanos que encontrava pelo caminho. Quando a internet começou a ficar um pouco mais rápida, chegou também a possibilidade de visitar a locadora sueca, se é que você me entende. E aos poucos, fui preenchendo algumas lacunas, matando a curiosidade de outros mundos para além do meu mundinho.
Porque cinema, pra mim, era uma forma de ir mais longe. Já falei aqui da minha sensação de uma vida limitada pelas possibilidades. A locadora era o lugar que representava, pra mim, outros territórios, vivências, experiências, pessoas, sotaques. Escolher um filme era comprar uma passagem que te fazia viajar no espaço-tempo. Dava pra surfar nas praias da Califórnia, fugir de uma conspiração internacional pelas fronteiras difusas da Europa e cantar num karaokê na noite de Tóquio, tudo isso apenas em um final de semana. Logo eu, que sequer nado, dirijo ou canto em público.
Não quer dizer que eu nunca fosse ao cinema. Muitas vezes, peguei o ônibus para a cidade vizinha exatamente com esse objetivo. Nem sabia que filme estava passando - no singular mesmo, em sala única, um horário apenas. Só queria sentar na sala escura, comer a pipoca com queijo e bacon vendida por um senhorzinho na porta e me deixar levar pela história. Anos depois, me mudei pra uma cidade com - pasmem - sete salas de cinema. Até hoje, me sinto privilegiada por ter acesso a essa verdadeira chave de portal, como se saída de um filme do Harry Potter. Basta entrar e esquecer o mundo lá fora.
Mas nunca me esqueço que essa apaixonada por histórias que persiste hoje se formou lá, nos balcões daquelas locadoras. Foi ali que eu descobria um filme favorito da vida toda semana; que fiquei debatendo a ordem certa dos acontecimentos em uma história não linear; que fui desafiada a assistir um filme especialmente ruim de Almodóvar até o fim (e o pior é que era ruim mesmo). Ali, curti meus maiores fandoms. Aceitei inúmeras recomendações, descobri muito do que gostava e não gostava. Consegui ir além, apesar de tudo que me restringia.
Uma vez, levei uma amiga da cidade onde moro hoje para conhecer o lugar de onde vim. Ela achou tudo uma graça, mas disse não saber como eu vivi numa cidade sem cinema. Ela enlouqueceria, falou. Eu respondi que essa era a realidade da maioria das pessoas - 5.109 dos 5.570 municípios brasileiros, pra ser mais exata. E que eu teria, sim, amado ver O Rei Leão num cinema com ar condicionado, ao invés de em uma sala de aula quente na escola e sem pipoca. Mas tudo bem - essa foi a experiência que eu pude ter e sou grata por ela.
Olhar pra trás coloca muita coisa em perspectiva. Ter um espaço seguro para experimentar, para passar horas fazendo escolhas e trocando ideias foi fundamental para que eu pudesse me sentir um pouco dona da minha história. Muitos brasileiros têm seus próprios relatos de escassez, de tudo que não puderam ter. Os problemas socioeconômicos que fazem dessa a realidade de tanta gente não devem nunca ser subestimados. O que eu tentei fazer foi buscar o escapismo possível, a fuga que estava ao meu alcance. Por um tempo, foi a única que tive. E foi uma doce companhia enquanto eu entendia quem era, o que queria e como faria para chegar lá.
Algum tempo depois, consigo olhar pra essa época com nostalgia. Não dos filmes em baixa qualidade ou das multas que pagava por não devolver a locação na hora certa. Mas daquela menina que saía do casulo em busca de si, do outro, do mundo. Ela tinha muito a descobrir, e mal podia imaginar as aventuras que ainda iria viver.
O desafio, agora, é seguir tendo essa mesma gana de descoberta e curiosidade. Porque imagina só perder isso - e a si mesmo - no meio do caminho? Daria um filme bem ruim.
Diz aí nos comentários: qual é o seu “terceiro espaço”?
+ recadinhos
Desculpa aí o sumiço, tava doidona (leia-se trabalhando em excesso kkkcrying)
Muitos leitores novos por aqui. Bem vindos! Que tal deixar um comentário respondendo como você conheceu essa humilde newsletter?
Hora do jabá: minhas entrevistas mais recentes são com mxmtoon, Warpaint e Jacob Banks.
Oi Nath, que gostoso te ler. Acho que meu terceiro espaço foram as livrarias e as bibliotecas da escola. Sempre amei estar entre os livros, me misturar e me camuflar entre as estantes, sentar num canto, abrir um livro e me sentir invisível, fechada pro mundo externo e mergulhada no mundo das palavras, das narrativas, das mentes de escritores, da minha imaginação. Até hoje me sinto em paz num ambiente com muitos livros.
Olá, Nathália. Conheci através da newsletter da Vanessa Guedes. E estou amando maratonar seus textos, você escreve muito bem. Obrigada 🤍