Existe uma fase da vida em que a gente passa a rejeitar tudo que nossos pais representam. Queremos estabelecer uma identidade própria e, sob hipótese alguma, ser vistos andando de mãos dadas com eles pela rua. O nome disso é adolescência e é um porre pra todos os envolvidos.
Eu nem acho que fui uma adolescente especialmente insuportável, mas escolhi me rebelar logo com as referências musicais da minha mãe. Se eu soubesse o que era cringe quando era mais nova, certamente diria: “esse CD da Gal Costa de novo? Que cringe!”. Achava um absurdo a mãe botar pra tocar aquele Millennium da Gal e me impedir de colocar Backstreet Boys, pela milésima vez. Foi assim que eu passei a adolescência inteira achando que “Chuva de Prata” era da Sandy, pois 1) estava num disco de Sandy & Junior; e 2) eu saía de perto sempre que começava a sessão musical materna, pra não correr o risco de gostar.
Foi libertador. Naquela época, eu começava a ter acesso à internet com mais velocidade, o que me levou a passar muitas horas na comunidade Discografias, do Orkut. Descobri o Last.FM, o que me fez clicar em recomendações de bandas que vieram a se tornar as minhas favoritas até hoje. Posso dizer que defini nos meus próprios termos o que seria meu gosto musical, e hoje ganho minha vida escrevendo sobre música. Nada mal.
Corta pra 2010. Comecei a fazer assessoria de imprensa pra um grupo de chorinho. A única coisa que eu sabia sobre o gênero é que eu queria viver numa roda de choro. Fiz até um curta pra faculdade na época. A alegria, a vibração que habitava um simples coreto de praça tomava conta de mim - e de crianças, adultos, idosos em torno daquela música instrumental que, de alguma forma, falava com todos nós.
Comecei a pesquisar as músicas do repertório. Delas, fui parar em artistas similares, em referências cruzadas que me levaram ao samba, à marchinha, ao maracatu, ao jazz, à bossa. Saí na MPB e dei de cara com todos aqueles que eu havia rejeitado por tanto tempo. Pegava HDs emprestados, cheios de discografias. Elis, Caetano, Nara, Chico, Edu, Vinicius, Clara, Gil, Tom, Paulinho e a turma toda.
Era um caminho sem volta - ainda bem. Descobri que aquela música não só era linda, como dialogava comigo, parecia já vir impressa no meu DNA. É tipo “Carinhoso” na roda de choro. A flauta puxa e todo mundo, em uníssono, completa: “meu coração, não sei porquê…”.
Não me tornei uma grande fã de Gal, mas compreendi, tardiamente, seu brilhantismo, sua voz única, sua importância enquanto brasileira, afrontosa da ditadura, da hipocrisia dos bons costumes. Mais que uma artista… que mulher, viu?
Quando Gal partiu, algo se quebrou dentro de todos nós. Porque ela e Elza, infelizmente, puxaram a fila em 2022 de uma geração que há de nos deixar - tô falando de seus contemporâneos, todos ainda aí produzindo, tal como elas. Caetano, Bethânia, Chico, Gil, Milton, Tom Zé, Paulinho da Viola (que neste sábado completa 80 anos!) seguem todos entre nós, ainda bem. Valorizemos cada minuto perto deles.
Todo esse papo me fez pensar em como construímos nosso senso de identidade. Agora que sou mãe, vejo de perto como a criança depende dos pais até para ser, não apenas para existir. Com o tempo, ela vai se dissociando e descobrindo que é uma pessoa inteira, por si só, dona dos próprios gostos, vontades, caprichos.
Talvez essa construção nunca acabe, mas chega uma fase da vida em que a gente se dá por satisfeito. Apresenta para o mundo uma versão do que achamos que somos ou que queremos ser. Nos vestimos para o papel, nos comportamos de acordo com a panelinha a que queremos pertencer.
Quando me mudei para outro estado, meu senso de identidade foi profundamente abalado. Num primeiro momento, eu fui de ser uma menina que se perdia bem na multidão para ser “a mineira”. Onde chegava e abria a boca, ouvia: “você é de onde?”. Nunca me incomodei com isso, tinha orgulho de ter meu sotaque reconhecido, porém pela primeira vez fui confrontada com a possibilidade de ter um sotaque. Trem doido, sô.
Depois, passei a ouvir que “nem sotaque você tem mais”. Escuto isso de pessoas da minha cidade natal, do meu marido quando quer implicar comigo, mas ouço mais ainda quando entro num lugar novo, abro a boca… e ninguém pergunta de onde eu sou.
Passei a usar uma camisa com a bandeira de Minas. Comprei uma brusinha do Atlético Mineiro, colei um adesivo do Galo no carro. Meu chaveiro? Também é um escudo do meu time. Quando alguém vem pegar no meu pé por mais uma derrota do Atlético, eu sorrio. Fui notada.
É besteira, eu sei. A própria definição do que é ser de qualquer lugar é subjetiva, ainda mais se tratando de um estado grande como Minas Gerais. Sou da Zona da Mata, o que significa que ouço dos fluminenses que “Juiz de Fora é praticamente Rio”. No sul, o sotaque carrega no erre igual o dos paulistas. Ao norte, a fala é meio cantada, abaianada. E no meio disso tudo, tem centenas de municípios que foram construindo uma identidade paralela àquela perpetuada nas novelas da Globo.
Mas fiquei pensando no que significa ser mineira justamente essa semana, quando acabei de ler a obra completa da Adélia Prado. “Poesia Reunida” é um calhamaço lançado pela Record em capa dura, como deveria ser. É uma coleção de oito livros de 1976 a 2013, em que a autora anda em círculos pelos mesmos temas: sexo, morte, religião. Não de uma forma repetitiva, mas trazendo sempre novas perspectivas para as questões que a definem ao longo da vida.
Adélia Prado é a personificação da senhorinha mineira. Primeiro que você olha pra ela e pensa: awn, adorável. Segundo que ela tem aquela voz cadenciada, sem pressa, que já vem de fábrica em toda vovó do interior. Basta começar a ler seus poemas para notar que ela é, também, muito católica. Sua existência gira em torno da vida doméstica numa cidade pequena, dos filhos, do marido, de Deus e da própria poesia.
Ler Adélia é, pra mim, uma volta às origens. Me remete a uma vida simples, em que familiares são próximos, vizinhos se conhecem e a maior preocupação do dia é fazer um bolo pra acompanhar o cafezinho.
Claro que essa é apenas uma das muitas possibilidades do que significa ser mineiro. Meu objetivo é que alguma delas se incorpore, de alguma forma, à identidade da Florinha, nossa filha. Só porque criança falando “uai” é fofo demais. Só não pode ser cruzeirense, porque isso seria um golpe fa-tal no meu coração.
[CHUVA DE LINKS]
Falando em descobrir quem a gente é, me apaixonei por “Eu em busca de mim”, do novo disco do DINGO.
Podcast do Tenho Mais Discos Que Amigos! onde a gente comenta o legado de Gal e Rolando Boldrin, esse gigante da cultura regional brasileira que nos deixou no mesmo dia.
Comecei uma playlist só com os lançamentos mais relevantes - e melhores, claro - de cada semana. Atualizo toda sexta. Segue pra dar uma força a essa jornalista freelancer? :)
Incrivel.