Imagina só... uma salsicha criativa?
Existe um motivo porque ninguém quer visitar uma fábrica da Sadia
Parece loucura dizer isso em pleno 2022 – o ano da tecnologia, diriam alguns –, mas houve uma época em que artistas eram membros admirados de uma comunidade. Não apenas os ricos e famosos, mas os tipos criativos em geral sempre foram um ímã de admiração – vide romantização do sofrimento do artista para mais detalhes. Existe um poder de atração, um charme inerente a esses sujeitos que faz com que quase todo mundo admire pelo menos um cantor, ator de cinema, artista plástico, escritor. Talvez o maior exemplo disso seja o poder de sedução do homem com um violão – quando todo mundo sabe que não há nada mais arriscado do que dar atenção pra um homem com seu violão, ou ele pode nunca mais parar de cantar Legião Urbana.
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A admiração não é infundada, claro. Pessoas que criam arte do nada, ou a partir de uma referência, são seres que trabalham muito até chegarem em algo possível de mostrar ao público e transformar em carreira. E em tese, todo mundo gosta de dar uma espiadela atrás das cortinas. A gente, que é leigo e apenas parte do público, adora sentir que está presenciando algo importante acontecendo. É só quando você participa da sua primeira passagem de som, quando você assiste o seu primeiro show do palco que fica claro que essa proximidade dos bastidores é, no mínimo, supervalorizada. Seria nossa tara pelo exclusivo, a vontade de se sentir VIP, o maior atrativo ali? Ou será mesmo a vontade de ver a arte sendo feita?
Existe também a ideia de que em tempos de redes sociais, a intimidade com o artista é quase palpável. Claro que nem se compara minha época de fã clube de Backstreet Boys, em que cada revista e pôster era conquistado, com assistir o Nick Carter brincando na sala de casa com os filhos no Instagram. Mas a essa altura do campeonato, todo mundo está careca de saber que o que postamos online é meramente um recorte, editado e com filtros, da realidade. Até que ponto essa intimidade é real?
Um dos grandes prós do meu trabalho como jornalista musical é a proximidade, física ou virtual, de artistas, muitos deles que eu admiro e acompanho há tempos. Nunca deixou de me encantar essa possibilidade de trocar uma ideia com pessoas que criaram obras tão importantes – se não pra mim, certamente pra muitos alguéns. Pude, inclusive, agradecer a todos os artistas e bandas que me ajudaram em períodos de depressão. Às vezes, vale muito a pena conhecer seus heróis.
Meu papo com essas pessoas passa, invariavelmente, por seus processos criativos. Por vezes, há uma história com começo, meio e fim que levou ao nascimento de um disco. Em outras, não há nenhuma explicação elaborada para estéticas e inspirações, só há o que deu pra fazer dentro das circunstâncias. A gente esquece que trabalho artístico é cerebral e emocional, mas também braçal. Muitas vezes, não é bonito e sequer inspirador saber que, pra chegar naquelas 10 músicas que a gente consome em uma semana e depois descarta, foram centenas de composições. Quem vê close não vê corre, aquela história toda.
Não estou fazendo pouco da experiência dos bastidores, e sequer reclamando. Entendo que existe um interesse genuíno em entender como tal efeito especial foi feito naquele filme de super-heróis, mas existe uma diferença entre assistir um featurette no Disney+ e estar in loco num set, onde as horas de espera são intermináveis.
No fim das contas, o processo de fabricação da “salsicha” interessa muito mais a quem é da área, pessoas que já são ou têm interesse em atuar no mercado da arte, cultura e entretenimento. Quem não é pode não ver tanta graça em testes de iluminação, ângulos de câmera, gravação de instrumentos, composição de músicas, rascunhos de obras. O público já quer receber o hit pronto, e errado não está.
Dia desses, assistindo à entrevista da Maggie Rogers para o Zane Lowe, fiquei sabendo que ela frequentou um grupo virtual de compositores. A ideia era estipular um dia, de tantas em tantas semanas, para aquelas cabeças pensantes sentarem e escreverem música, do zero. Maggie, dona de um dos melhores discos de 2022 – o incrível “Surrender” -, era a mais jovem de uma trupe que incluía Feist, Beck, Damien Rice… Só os melhores enviando links secretos de Soundcloud entre si, porque sim. Cada um terminou esse processo com centenas de músicas que jamais ouviremos.
Imediatamente, minha cabeça criou uma lista de coisas que eu daria em troca de poder estar nesse grupo de zap, e-mail, comunidade do Orkut, que contava com dinheiros, meus serviços como assessora de imprensa gratuitamente por toda a eternidade e até partes do corpo. Foi aí que eu, sendo de humanas, me dei conta que chegaria na casa das mais de mil músicas, não necessariamente boas, que eu estaria disposta a ouvir.
Existe um motivo porque os artistas não colocam no mundo tudo que compõem, escrevem, criam. Porque nem tudo é bom o suficiente, e tudo bem. Ninguém é genial o tempo todo. Por isso eu sempre fico com um pé atrás com edições póstumas de livros inéditos. Das duas uma: ou o autor terminou a obra e não achou que valeria publicar; ou o autor sequer teve tempo ou vontade de concluir o projeto. Em ambos os casos, melhor deixar quieto.
Observar um artista trabalhando tem um quê de mágico. Inevitável estar cara a cara com as ninfeias de Monet, no Musée de l'Orangerie, e não pensar em como ele conseguiu pintar aquilo com tanto detalhe e, ao mesmo tempo, delicadeza – tudo enquanto ia perdendo a visão, o que fica claro em uma das salas. Tenho um fascínio por Claude Monet desde que li um livro na infância sobre uma menina que visita sua casa, em Giverny, e vê de perto todas aquelas flores que o inspiraram e sua famosa ponte japonesa.
Eu mesma tive o prazer de fazer essa viagem. Na nossa lua de mel, eu e Daniel pegamos um trem de Paris para a Normandia para visitar o que foi a casa da família Monet e hoje é um movimentado museu. Entramos no estúdio e ateliê do pintor, hoje com muitas das suas obras mais famosas. É mesmo marcante estar no espaço de trabalho onde um mestre rascunhou algo que se tornou eterno. Mas é nos outros espaços da casa onde se encontra mais beleza. O charme da residência do artista está na sala de jantar, toda amarela; na cozinha, toda azul; nos quartos no andar de cima, igualmente temáticos. Lá de cima, você consegue ver as tulipas enormes no jardim. Pra manter tanta beleza por perto, Claudinho pagava seis jardineiros. E pintou incessantemente até não conseguir mais, encontrando o impressionismo nas suas cenas cotidianas. Talvez more aí o verdadeiro processo criativo.
Os bastidores de uma obra importam, principalmente para outros criadores. Idealizamos e romantizamos esse trajeto que liga ponto A a ponto B como se fosse um mapa do tesouro, uma explicação para a existência de algo que nos move. Essa busca tira da equação a beleza do acaso, o fato de que às vezes as coisas brotam sem razão mesmo.
Quando perguntado sobre como fez a volta mais rápida e perfeita da história da Fórmula 1 no treino do Grande Prêmio de Mônaco de 1988, Ayrton Senna disse viver uma espécie de transe.
Naquele dia, me dei conta de que não dirigia mais conscientemente. Estava em outra dimensão, o circuito para mim era um túnel, onde eu só ia, ia, ia… e percebi que estava muito além de meu entendimento consciente. Em alguns momentos enquanto estou dirigindo, me separo completamente de qualquer outra coisa. Naquele dia, disse pra mim mesmo – isso foi o máximo para mim, não há espaço para mais nada. Nunca mais alcancei aquela sensação.
Acho que essas aspas do maior que tivemos dizem muito sobre trilhar um caminho – no caso dele, literalmente. Ayrton fez aquele treino de classificação sem sequer esbarrar nas linhas limítrofes da pista, algo jamais superado por outros pilotos, com carros mais potentes e até mais títulos que o brasileiro. Essa perfeição foi obra de muita prática e técnica, mas também de um sentimento jamais reproduzido. Ela não pode servir como via de regra para comparar trajetórias, mas certamente pode ser – e é – uma inspiração para quem veio depois.
Respeitar a arte é também entender que, muitas vezes, ela é porque sim, existe apenas porque pode existir exatamente daquela forma, feita por aquela pessoa, com suas próprias bagagens emocionais e técnicas, obra de um espaço e de um tempo únicos. Também existe beleza em desconhecer alguns mistérios, apenas para poder apreciá-los completamente. Porque imagina só saber tudo que está por trás das pinceladas, acordes, frases? Não há emoção que sobreviva.
Dicas da vez
- Minha entrevista com o Trinidad Cardona, uma das vozes na canção tema da Copa do Mundo. O artista mostra que viver de música é consequência de corre e sorte. Ele, por exemplo, trabalhava em bicos e morava no próprio carro, até ver uma faixa explodir no TikTok.
- Estou na fila do freela, porque não tá fácil pra ninguém. Montei um portfólio com alguns links do que venho publicando na imprensa musical nos últimos anos. Se tiver dicas de oportunidades para matérias e entrevistas no meio cultural, estou na área!
- O texto acima brotou do curso Técnicas Criativas para Transformar Ideias em Textos, da Aline Valek na Domestika. Fiquei feliz em conseguir concluir algo por mim e não poderia recomendar mais para pessoas que, como eu, estão no início de uma jornada na escrita criativa.
eu adorei esse texto <3 quando rola um fascínio pelos bastidores, gosto de recorrer às autobiografias. dá a sensação de que o acesso àqueles relatos e acervo exclusivo de fotos e cartas é o mais próximo que vou chegar do artista que eu admiro. fico viajando nas histórias, já me sinto íntima. 😅
Incrível <3