O ano era 2013. Críticos de TV alardeavam: estávamos na terceira era de ouro da televisão americana. Tudo graças a uma leva de “homens difíceis”, como vieram a ser chamados os Tony Sopranos, Don Drapers e Walter Whites da vida.
Era uma evolução do conceito do anti-herói, personagens complexos que desafiavam nosso senso de vilão e mocinho, que nos faziam torcer para o traficante, o adúltero, o chefe da máfia. Dali, saiu o livro “Homens Difíceis”, escrito pelo crítico e jornalista Brett Martin sobre a geração que iria definir uma época na televisão americana e cimentaria essa alcunha, a permissão eterna: vá, faça, conquiste, nos choque. Estaremos aqui para aplaudir. Afinal, boys will be boys.
O ano é 2023. The Sopranos, Mad Men e Breaking Bad mantiveram o status cult que conquistaram ainda em seu auge. Mas o homem da TV não é mais o mesmo. Ele é o branco cis, claro, mas também é o rapper de Atlanta, é o árabe-americano como Mo e Rami, é o “Reservation Dog” que quer sair de sua reserva indígena para desbravar a América. Esse pokémon evoluiu - e mais: subiu ao palco das principais premiações da indústria como quem diz a que veio.
Nesse meio tempo, a TV viu surgir outro fenômeno: a “mulher complicada”. Assim foram chamadas as personagens complexas que povoariam as séries a partir de então. Não é que elas não existissem antes. Skyler, Carmela e Betty estavam longe de ser esposas submissas de seus maridos - um fabricante de metanfetamina, outro chefão da máfia italiana e o outro, bem, publicitário (já é o suficiente). Mas se o Dr. House era babaca e viciado em remédios, ganhamos uma Nurse Jackie também viciada, só que adúltera e igualmente protagonista - Edie Falco foi da esposa de Tony para a enfermeira do título. Se o detetive de polícia pode ser truculento, a gente cria uma investigadora sangue frio e analítica.
Elas também evoluíram. Fleabag flerta com o padre, Eve burla regras do MI-6 para se aproximar de uma assassina em série que quer lhe matar. Lenú e Lila, de A Amiga Genial, desafiam expectativas para mulheres em plenos anos 60 e 70. Elas foram para o lado oposto da câmera, assumiram posições de criação dos seus próprios programas, algumas com contratos multimilionários “apenas” para abastecer as plataformas de conteúdos povoados pelas mesmas “mulheres complicadas” que ajudaram a popularizar. Não por acaso, Phoebe Waller Bridge aparece nos créditos como roteirista e produtora executiva em duas dessas três séries que citei. Estamos na era de Shondaland, meninas. Tudo é possível.
Há 25 anos, quando a HBO orquestrava a maior revolução em contação de histórias na TV que já vivenciamos, algumas dessas coisas eram impensáveis. Hoje, não é tão chocante assim encontrar essas mulheres errantes. Cínicas, calculistas, frias, de moral dúbia, a antítese da delicadeza e da maternidade. Há muito a evoluir, claro. Mas tudo começa com quem tem a caneta na mão, e por mais que os Davids - Simon e Chase - fossem geniais, seu reinado não é mais exclusivo, ainda bem.
Voltei a pensar sobre isso esses dias, quando fiquei sabendo que a obra do Brett Martin ganhou uma edição de dez anos e, pra completar, li “A Pediatra”. O livro da Andréa Del Fuego foi lançado em 2021, e embora tenha ganhado de aniversário no ano passado, só parei pra ler agora. Lembro da recepção calorosa na época da publicação, mas também de algum estranhamento com a personagem principal. Cecília, como o título entrega, é médica de crianças no consultório, neonatologista na maternidade. O que não se espera, no entanto, é a natureza nada maternal que ela não se dá ao trabalho de esconder.
Não gosta de crianças e bebês, ainda mais os doentes. Paciente em estado crônico ganha um encaminhamento para especialista e “um até nunca mais”. Não quer vínculo com as famílias, adora uma cesárea com horário marcado, faz chacota dos partos humanizados comandados por doulas. Não demonstra qualquer empatia com a depressão do marido, é classista com a empregada que mora no seu apartamento - no quartinho dos fundos, claro - e calcula friamente os passos para obter sempre o que deseja, seja um homem, seja uma parceria profissional.
O livro não é sobre uma mulher que desafia padrões - aliás, Cecília é o cúmulo do padrão: branca, rica, magra, CEP bem localizado. Poderia muito bem ser uma loira odonto chamada Karen. Mas é impossível passar por suas páginas sem notar o quão diferente Cecília é de uma típica personagem feminina. O fato de que a narração é toda em primeira pessoa nos coloca direto na cabeça dela, um fluxo de pensamentos sem o menor filtro ou culpa. Seria um “Quero Ser John Malkovich” às avessas? A história acontece quando essa estrutura toda é abalada por sensações e pessoas que fazem a protagonista questionar se é, mesmo, essa torre de marfim, impenetrável para sentimentos que não lhe tragam ganhos futuros.
“A Pediatra” é, curiosamente, um livro fácil de ler. Mesmo que uma personagem capaz de chocar se derrame por todas as páginas, ela se torna intrigante em uma história que move rápido, sem dar muitas voltas. Parte da graça está em embarcar em uma narrativa comandada por alguém inconvencional, se descortina ali uma nova gama de possibilidades que simplesmente não existiriam caso essa personagem fosse um pouco mais tradicional.
É claro que já existiram protagonistas que desafiaram os padrões literários e sociais ao longo dos séculos. Anna Karénina andou para que Cecília pudesse correr, sabe? Existe uma longa tradição de mulheres fictícias que ajudaram a avançar a pauta das mulheres da vida real, embora muitas delas tenham sido criadas por homens. Escritores desenvolveram personagens fascinantes, da Molly Bloom de Joyce e Lady Macbeth de Shakespeare até a Lisbeth Salander de Stieg Larsson, passando por Virgília e Capitu, as coadjuvantes adúlteras (?) de Machado que roubam a cena de seus Bentinho e Brás Cubas.
A questão não é nem o male gaze, o olhar tantas vezes simplista com que as mulheres foram retratadas - até porque não são apenas os autores masculinos que reduzem mulheres a estereótipos de boas moças. Mas estamos celebrando o fato de que mulheres transgressoras não são tão novidade assim - e eu acho que é, sim, motivo para comemorar. Houve uma época em que mulheres fora do padrão eram apenas vilanizadas - Miranda Priestly era literalmente o capeta encarnado, né? - ou então instáveis emocionalmente. Lembra da Brenda, de Six Feet Under? Bipolar, “tadinha”.
Cecília incomoda as pessoas e isso talvez tenha a ver com o fato de que ela é um ser humano ruim, e não “apenas” uma mulher ruim. Manipuladora e sem escrúpulos são alguns dos adjetivos que ela poderia levar, sem exagero. As resenhas no Goodreads vão de “Nazaré Tedesco da nossa geração” a “esse aqui o Ari Aster vai querer dirigir quando adaptarem” - qual é a crítica e qual é o elogio ainda não está totalmente claro!
Acho que o que faz de “A Pediatra” um vira-páginas é a capacidade de surpreender. A história não é necessariamente das mais cativantes ou surpreendentes, embora tudo aconteça numa crescente de tensão e nonsense. Você sabe que tem algo de diferente ali te puxando - e no fim fica claro que o frescor vem dessa protagonista improvável, intragável, inacreditável.
Quer dizer, até certo ponto. Só quem já visitou a urgência de hospital com criança febril e encontrou um médico apático e sem a menor vontade de estar ali sabe que pediatra que não gosta de criança não é assim tão inverossímil.
“Sempre fomos o que os homens disseram que nós éramos. Agora somos nós que vamos dizer o que somos.“ — Lygia Fagundes Telles
💭 Imagina Mais:
🎙️Troquei o Spotify pela Deezer e estou gostando muito. Embora ainda ache a aba de podcasts escondida e nem sempre atualizada, agora eu tenho acesso aos ótimos programas originais da plataforma. Foi assim que descobri Jogo de Cartas, uma produção da Rádio Novelo que conta a história do Lobby do Batom e discute a presença das mulheres na política nacional a partir da participação feminina na Constituição de 1988. A cada episódio eu descubro alguma informação absurda sobre o lugar das mulheres no Brasil dos anos 80 que é, como diria Bruna Marquezine, de fall your asshole from your butt.
🎶Dance como se ninguém estivesse assistindo. Esse é o tipo de liberdade que a gente tem que “se permitir”, mas que essa senhora bêbada do clipe da Mitski já tem - ela a encontrou no fundo de um copo. “Quando se quebra uma promessa, ela te quebra de volta”, Mitski canta em “Bug like an angel”. Angelical é ela - e ainda aquele coral bonito que aparece cantando nas músicas do disco novo.
🏍️ A
é possivelmente a newsletter que eu mais vejo citada por aí, com leitores de todo tipo, todo mundo motivado por entender melhor a criatividade. Nessa edição, o Tiago escreve a partir de uma ótima quote da motomami herself, Rosalía.🫦“O inseguro seguro de si é nada mais que alguém que aprendeu a relaxar diante da vista para o abismo. Eu olho e continuo andando.”
, sempre certeira. (O que me lembra que a série Insecure tem uma ótima protagonista feminina).✍️A
conta sobre o privilégio que é tirar uns dias só pra escrever - e nada mais. O quão revolucionário é fazer isso sendo uma mulher? Muito, a pia de louças diria.📰Entrevistas que publiquei por aí:
Jared Leto (Thirty Seconds To Mars) sobre o álbum que acabou de sair, açaí, Brasil, otimismo e emo.
Baby do Brasil (Novos Baianos) sobre os 50 anos do álbum icônico “Acabou Chorare”.
Teago Oliveira (Maglore) sobre 15 anos de carreira, música política, Luísa Sonza, o Nolan e mais.
Gabriel, O Pensador sobre o primeiro álbum em 11 anos, o rap como ferramenta de educação e revisitar músicas antigas.
Gostou de ler sobre séries? Pois saiba que eu escrevo uma newsletter inteira sobre o assunto - O Corvo de Prata, que faz parte do Série Maníacos!
Obrigada por ler até aqui e até a próxima!
Como é bom ter Nathália Pandeló na minha caixa de entrada <3
Carmela andou pra Fleabag voar <3