O precipício da descoberta
A carta de Herbie Hancock e Wayne Shorter para as próximas gerações
Primeiramente, quero dar um ‘oi’ para quem está recebendo a Imagina Só pela primeira vez - tivemos uma enxurrada de novos assinantes, vindos das outras newsletters que edito: a Spotlight (do Tenho Mais Discos Que Amigos!) e O Corvo de Prata (do Série Maníacos). Aqui, falamos da vida, do universo e tudo mais, pelo viés da cultura pop - às vezes é música, é série, é filme, é literatura, de tudo um pouco. Espero que gostem!
Aos assinantes de sempre, obrigada por não desistirem dessa humilde newsletter - às vezes, um respiro é necessário.
Mergulhemos.
Existe uma famosa carta assinada pelas lendas do jazz Herbie Hancock e Wayne Shorter, uma missiva aberta a artistas em particular, mas destinada a todos nós, no geral. É um texto cheio de pérolas de sabedoria de dois dos maiores que já tivemos - Shorter, falecido em março, foi o tipo de saxofonista que mudou o jogo; o piano de Hancock segue até hoje ativo, dialogando com o que as novas mentes do jazz estão fazendo.
A carta é um chamado, e o destinatário é justamente a geração que vai liderar o caminho a partir de agora. Em meio ao caos no mundo, Herbie e Wayne clamam por arte que cura, mas não deixa de incomodar. Fazem um convite à reflexão, à coragem e à busca incessante pela expressão autêntica, características que - insistem - podem pertencer a qualquer pessoa, independente da profissão.
A coisa toda ganhou forma em 2016, quando Hancock e Shorter foram abordados por uma revista, pedindo orientação para jovens músicos. O texto se tornou um compilado de 10 conselhos que dialogam com o nosso lado mais humano. Citando acontecimentos marcantes, como o atentado no Bataclan e a guerra na Síria, eles recomendam:
Primeiro, acorde para a sua própria humanidade.
Abrace e conquiste o caminho menos percorrido.
Dê boas vindas ao desconhecido.
Entenda a verdadeira natureza dos obstáculos.
Não tenha medo de interagir com aqueles que são diferentes de você.
Se esforce para criar um diálogo sem segundas intenções.
Tenha cuidado com o ego.
Trabalhe na direção de um negócio sem fronteiras.
Aprecie a geração que caminhou antes de você.
Por fim, viva em um estado de constante encantamento.
De forma tão resumida, essa lista não faz jus ao conteúdo da carta - que recomendo a leitura completa, direto no site de Herbie Hancock. Mas ambos terminam essa sequência dizendo que “tudo que existe é produto da imaginação de alguém; cuide bem e nutra a sua, e você sempre se encontrará no precipício da descoberta”.
No cerne da carta aberta, Wayne e Herbie enfatizam a importância da autenticidade na expressão artística e incentivam os artistas emergentes a abraçar sua individualidade. Eles destacam que a música tem o poder de transmitir emoção e conectar as pessoas de maneiras profundas e significativas. Além disso, Hancock e Shorter enfatizam a responsabilidade social dos artistas, encorajando-os a usar a música como uma ferramenta para promover justiça social, igualdade e sustentabilidade. Eles ressaltam a importância de abordar questões urgentes por meio da arte e inspirar mudanças positivas. A carta também destaca a importância da colaboração e da aprendizagem contínua, encorajando os artistas a se conectarem uns com os outros e a construírem uma comunidade de apoio, reconhecendo a interconexão do mundo e a troca de ideias como essenciais para o crescimento artístico.
Quando essa carta foi escrita, seus autores já estavam nas sétimas e oitavas décadas de suas vidas. Ainda assim, ela não traz nada do cinismo que uma existência prolongada pode proporcionar. Pelo contrário. “À medida que acumulamos anos, partes da nossa imaginação tendem a ficar dormentes. Seja pela tristeza, lutas constantes ou condicionamento social, em algum ponto do caminho, as pessoas esquecem como acessar a magia inerente que existe nas nossas mentes. Não deixe que essa parte da sua imaginação esvaneça”, eles escrevem.
Não consigo me imaginar mantendo o mesmo grau de esperança aos 80 anos. Mas existe um motivo porque Wayne e Herbie foram tão pioneiros e transformadores em tudo que fizeram - eles quebraram barreiras desde os anos 60. Suas próprias existências, fazendo turnê num país segregado racialmente, era uma afronta. Eles estavam acostumados ao improviso, aos arroubos de genialidade que lhes escapavam pelos dedos. A urgência desses solos intempestuosos se traduziu em obras solo que, por muitas vezes, se interseccionavam. Não que sirva de medida pra grandiosidade, mas somados, esses dois têm 31 Grammys. Ao longo dos anos, suas experiências se cruzaram múltiplas vezes. E quando integraram o Weather Report juntos, essa musicalidade transbordava.
Estamos falando de um supergrupo antes de supergrupos virarem moda. Ainda nos anos 70 e ao longo de muitas formações que duraram uma década e meia, o Weather Report reuniu grandes nomes do jazz - entre eles estava um dos membros fundadores, o brasileiro Airto Moreira. O WR se tornou uma porta de entrada para o interesse do mercado americano em ritmos considerados “world music” e étnicos, um caldeirão sonoro que incorporaria elementos do rock, do funk, do soul, da música latina e tantas outras inspirações.
Wayne Shorter e Herbie Hancock juntos, então, produziam faíscas - quase que literalmente, se você considerar essa apresentação em que Herbie usa as entranhas do piano para criar sons de uma espaçonave.
O precipício da descoberta talvez seja o nosso verdadeiro Shangri-La, nosso El Dorado e nossa Nárnia ao mesmo tempo. Uma Atlântida submersa demais para quem só se atreve a ir até a superfície. Manter esse olhar curioso, esse ouvido aberto, esse coração disposto a se aventurar lá fora é o que separa a arte temporária, breve e esquecível daquela que dá o salto em direção ao desconhecido, a que desbrava e cria novos caminhos, sinapses, gêneros, expressões.
De fato, nada do que Wayne e Herbie abordam na carta se destina apenas a músicos ou artistas. Existe uma conhecida lista, criada pelo psicólogo croata Mihaly Csikszentmihalyi, que elenca 10 traços de personalidade paradoxais de pessoas criativas. E, pasme, todos os temos. Ele cita objetividade e paixão, brincadeira e disciplina, inteligência e ingenuidade como algumas dessas características. Em algum lugar do caminho, fomos ensinados a deixar de exercitar esse músculo da criatividade - e não precisa ser nenhum gênio para atrelar isso ao pensamento estruturado da educação que valoriza fórmulas no lugar de soluções inovadoras, das cobranças sociais que relegam as artes às categorias menos desejadas das profissões bem sucedidas.
Quando a gente coloca tudo isso na balança, nota o quanto se distanciou de um instinto tão primal quanto sobrevivência, reprodução, luta ou fuga. Talvez por isso as palavras de Wayne Shorter e Herbie Hancock ecoem em um mundo tão fragmentado, em busca de conexões verdadeiras. Sua carta aberta transcende as fronteiras do tempo e do espaço, inspirando artistas de todas as gerações a buscar a autenticidade, a responsabilidade social e a colaboração. Seus sábios conselhos dialogam com aqueles que desejam deixar uma marca duradoura, seja na história da música, seja na sua comunidade local.
Por meio de uma plataforma tão antiquada - veja bem, uma carta! -, esta geração é convocada a abraçar sua individualidade, a abordar questões sociais em seus espaços de expressão e a buscar o aprendizado contínuo. Ao fazer isso, perpetua o legado deixado por Hancock, Shorter e outros grandes, garantindo que a arte continue a desempenhar um papel vital na construção de um mundo mais consciente e inspirador. No mínimo, a trilha sonora vai ser, ó: show. Mesmo em meio ao caos.
Recentemente, vi Domi and JD Beck no C6 Fest, no Rio. Eles fazem parte dessa nova geração de jazzistas que não estão nem aí para as caixinhas, derrubando todas as expectativas de como músicos do gênero devem aparentar, performar, se portar no palco. Lembrei deles porque Herbie Hancock é um dos muitos artistas que agraciam o elogiado disco de Domi and JD Beck - também aparecem Thundercat, .Anderson Paak (que os contratou para seu selo), Mac Demarco, Kurt Rosenwinkel, Busta Rhymes e Snoop Dogg. Nada mal. Deixando aqui o link da resenha que fiz dessa noite, incluindo ainda shows de Samara Joy e Jon Batiste.