Na minha casa, sempre teve um quartinho de bagunça - quando não dois. Éramos seis em uma família pouco ortodoxa: avó e avô maternos, tia, prima, minha mãe e eu. Os Pandeló eram um clã vindo da roça para a cidade, e tal qual os Buscapé, não queriam abrir mão do pouco que conseguiram acumular até ali. Valorizar o que se tem era um princípio passado de geração em geração, uma herança da escassez, a sabedoria de quem já tinha passado pelo não ter.
Na dúvida, melhor não jogar fora. O quartinho da bagunça era um cômodo inteiro dedicado a caixas depositadas no dia da mudança e jamais revisitadas. Era um espaço lotado de peneiras furadas, comprovantes de pagamento de contas de 1972, xerox de livros já desbotadas. Para uma criança, como eu, poderia ser sinônimo de liberdade ou de caos total.
Era muito conveniente jogar ali dentro qualquer objeto indesejado, mas a memória mais marcante que tenho é o terror de imaginar qualquer amigo da escola vindo à minha casa, pedindo para usar o banheiro, errando a porta e se deparando com a masmorra da diretora Trunchbull. Ok, talvez eu esteja exagerando um pouco.
Só me livrei do quartinho da bagunça quando me mudei da casa da minha mãe. Não sou nenhum exemplo de Marie Kondo, mas algumas vezes ao ano faço aquela limpeza mais pesada, me livro de roupas, calçados, papelada já inútil. Doação, recicláveis, lixo. É um processo que me deixa mais leve, me permite achar espaço para o novo - nem que sejam novas bagunças.
Mas já diria a diretora da escola do Irmão do Jorel: bagunça… NÃO PODE!
Não há sequer desculpa pra bagunça. O guarda-roupas tá desorganizado? Toma aqui essas caixas de acrílico, só 100 reais cada uma. A despensa só precisa de uns potes com etiquetas padronizadas, rapidinho fica instagramável. Tá sem tempo de limpar? Tem aqui esse robô pelo valor que você não paga sequer à sua empregada doméstica.
Que tal relaxar com um programa que faz chacota de acumuladores? E dormir, tá complicado? Tem uma higiene do sono que é batata, basta assinar esse aplicativo de meditação aqui, programar alarmes no celular, dormir com esse relógio e depois comparar nos gráficos quantas vezes você acordou, roncou, falou dormindo. Descanso é tudo, né gente?
Agora tem uma coisa que chamam de “faxina mental”. Tem canais de YouTube e podcasts inteiros dedicados ao tema. TEDx, então, tem aos montes. Tudo para a limpar a mente, se livrar do que é inútil, parar de se estressar com notícias, redes sociais, a vida financeira. Tem uma vertente do minimalismo voltada apenas para viver com menos coisas… na cabeça.
E bem, faz sentido. Eu é que não sou louca de discordar. Estamos mesmo todos pirados das ideias, chapados de ansiolíticos, sem previsão de alta da terapia, vendendo o almoço pra comprar a janta enquanto esbravejamos contra a guerra, a fulana que tá de férias no Hawaii e postou no Instagram, o político X.
O que me impressiona nesse movimento todo é a noção de que conseguimos viver com menos informação e estímulo intelectual. Quando se fala de bens materiais, o planeta vai se impor e logo estaremos todos comendo menos carne, consumindo menos combustível. Mas a informação segue o caminho contrário: está mais barata e acessível que nunca.
Fingir que isso não acontece, que é só meditar e se resolve, é tapar o sol com a peneira - a mesma que estava furada no quartinho da bagunça na minha casa. Curiosamente, a mesma galera que vende soluções para “destralhar a mente” é a que está promovendo um curso de 30h sobre o assunto. Quem diz que você precisa de menos na vida é quem tá te enchendo de conteúdo, transformando até o mero ato de ocupar a própria casa em uma lista de tarefas. Não dá mais pra ir de um cômodo pro outro sem ~propósito: tem que levar algo que tá fora do lugar, pra facilitar nas faxinas cuidadosamente planejadas.
Existe uma tendência de sanitizar a vida até o ponto de automatizar tudo. Eu sou a primeira a comprar essa ideia, não resisto a chance de transformar tudo em uma lista de afazeres. Adoro experimentar um método, um produtinho milagroso, uma solução mágica. Sou a rainha do “ok Google”, de buscar hacks, dicas, truques. Nesse momento, estou no quinto artigo salvo no Pocket sobre como construir meu segundo cérebro. Tipo certos bilionários que pensam em colonizar a lua, porque já notaram que isso daqui vai pro saco muito em breve.
Atualmente, meu sonho de consumo é uma máquina de lavar louças, pra poder dedicar o tempo precioso que vou poupar em pesquisar no YouTube “19 formas de aproveitar sua lava-louças que você não conhecia” ou então “minha vida mudou depois de testar esse truque para poupar detergente de lava-louças”. Tempo é tudo, né gente?
Estou na minha quarta casa depois de sair da casa da mãe. Aqui tem um banheiro desativado que, inevitavelmente, se tornou uma versão do quartinho de bagunças. É o cômodo onde guardamos caixas de produtos que não podem perder a garantia, a terra que sobrou do último replantio num vaso novo, um cavalete de pintura que nunca se ajustou bem ao espaço do apartamento.
Foi ficando. A Nathália da infância me olharia com reprovação, eu sei. Já esqueceu o medo, a vergonha, a sensação de perder espaço para velharias sem valor? Tsc tsc tsc…
Mas já dizia Lulu Santos: vamos nos permitir. Dá pra investir no bullet journal, no segundo cérebro, no app milagroso e ao mesmo tempo abraçar um pouco de caos, imperfeição, desorganização. Até a Monica Geller tem um quartinho de bagunças, o que não impede da gente seguir tentando melhorar - desde que isso não nos torne o robô do autoaperfeiçoamento.
Não dá pra ser a nossa melhor versão possível todo dia - pensa num treco exaustivo? Nem tudo precisa estar em seu lugar, assim como nem tudo precisa ter propósito ou razão. Se a gente conseguir lembrar de levantar o olho da tela e só existir no mundo, já é meio caminho andado. O resto é tentativa e erro.
Abrace o caos, gostoso demais.