Fui pesquisar a origem do meu sobrenome. Gostaria de poder relatar descobertas primorosas, mas tudo que encontrei foram receitas de pão de ló. Normal.
Tinha também um monte de sites que prometem montar a sua árvore genealógica - por um valor, claro. Me embrenhei em um destes, gratuito e construído por uma igreja com ramificações internacionais, me levando a numa listagem enorme de Pandelós pelo mundo. Quando nasceram, morreram, foram batizados, se casaram. Certidões, documentos de imigração, atas de cortes marciais de diferentes forças militares, listas de passageiros e carimbos de todo tipo estampam uma história familiar que tem registros - pelo menos nesse site - que datam do século XVII. Há enormes buracos geracionais, como era de se esperar. Mas dá quase para traçar as linhas que levaram os Pandeló da Espanha e Portugal para os EUA, Argentina, Uruguai e Brasil.
De certa forma, está todo mundo conectado. Recebo mensagem de gente de São Paulo à Cidade do México que tenta entender: somos parentes? Quem é você aí do outro lado do mundo com um nome tão diferente e, ao mesmo tempo, tão familiar? Talvez sejamos.
No início dos anos 2000, fizemos uma pesquisa dessas. Havia um site hospedado no Geocities (RIP) que continha um breve histórico do nome, tentava explicar o significado, incluía o brasão da família. Imprimimos as informações e é tudo que temos hoje em casa - umas três páginas de história. Me lembro quase nada, só me saltou aos olhos o fato de o sobrenome ter a ver com uma pedra, e não com o bolo fofinho a que remete.
Parece pouco. E é.
Procuro pelo meu avô no Google. Não há ocorrências. Minha avó aparece apenas no Diário Oficial de Petrópolis, com registro do seu sepultamento no cemitério municipal. Ela aparecia no Google Maps, na janela do primeiro apartamento em que moramos aqui na cidade. Antes do carro do Larry Page passar de novo na porta e tirar uma foto mais atualizada da janela. Dona Antônia passou.
Parece pouco. E é.
Encontro no Family Search fotos de livros de portos no Uruguai, onde um certo José Pandeló aparece entrando no país via Montevidéu, em algum momento entre 1922 e 1923. Era católico, tinha 49 anos, era solteiro e argentino. Fazia o que ali, reiniciando a vida a essa altura do campeonato? Jamais saberemos.
Mas José existiu. Este, que viveu no Uruguai; e meu avô, outro José que viveu nas roças de Minas Gerais. Tão longe e tão perto.
É compreensível que alguém transformasse nossa necessidade de conexão com as raízes em um negócio. Agora, você manda um fio de cabelo, um cotonete e meio emiéle de cuspe e já conseguem rastrear quantos escravizados ou escravocratas havia na sua família. Existe programa de TV que escarafuncha as origens de gente famosa para ajudar a contar a história de como chegaram até ali. Tudo é storytelling, no fim das contas.
Escarafunchar. Procurar, investigar com minúcia e paciência, segundo o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa. Origem etimológica? É do latim medieval scariphunculare, do latim scaripho, -are ou scarifo, -are, fazer incisão, escarificar. Tem história.
A origem dos nomes e das coisas é algo que me fascina. A língua portuguesa está cheia dessas preciosidades, palavras que rolam da língua com borogodó, muitas delas vindas de terras distantes. Algumas da França, muitas do mundo árabe, outras tantas de África. Um grande caldeirão linguístico e também sonoro.
Buzanfa. Pindaíba. Chumbrega. Faniquito. Siricutico. Ziquizira. Maracutaia. Birosca. Mequetrefe. Chablau. Rebimboca da parafuseta. A tonga da mironga do kabuletê. Que língua te oferece tanta riqueza de detalhes em tão poucas sílabas? Provavelmente existe, mas desconheço, pois falo apenas duas línguas e meia. Três, se mineirês contar (e deveria).
Meu outro sobrenome também tem história. É Silva, do povo da selva. Os Santos são religiosos, os Oliveira remetem à azeitona, Ribeiro vem dos rios, Souza é das rochas, Ferreira entrega a linhagem dos que têm espeto de pau em casa. Claro que é tudo muito simplista. Não conheço nenhum guerreiro chamado Gomes, nenhum Machado que seja lenhador.
Mas gosto da ideia de contar uma história. Nosso nome carrega bagagem. Alguns de localização geográfica, outros de profissão ou status social. Nos dá um senso de identidade quando compreendemos por onde nossos antepassados passaram. Talvez o mesmo de visitar um museu, mas neste caso, um museu de si mesmo.
Estamos acostumados a olhar vitrines e exposições de acervos preciosos com distanciamento. Visitamos cidades que não são as nossas, países que não falam nossa língua e absorvemos suas culturas, coleções inteiras compradas ou surrupiadas, também, de terras distantes. Em alguns andares de museu, visitamos da China à África, do impressionismo à renascença. É importante fazer isso, olhar um Turner de frente, ficar cara a cara com uma pincelada de Monet.
Mas essas histórias não nos dizem respeito. Elas passam a fazer parte de nós quando voltamos para casa, com as malas cheias de cheiros e sabores dos lugares por onde passamos. Se aninham entre cachecóis e luvas de esqui, entre botas pesadas e meias grossas. Passam despercebidas pelas balanças e raios x dos aeroportos.
A nossa história é outra. E ela importa. O que há em um nome? Muito.
💭 Imagina Mais:
📺 É muito maior que a televisão de casa. Meu companheiro
escreveu sobre a magia de levar nossa filha ao cinema pela primeira vez.❤️ Nada de bom escapa. John Steinbeck escrevendo para o filho sobre ter paciência em aguardar a resolução das coisas.
🦵Gostaria muito de não querer ser magra. No auge do “mas pra que fazer lipo?”,
fala sobre os sacrifícios que a gente faz para caber em padrões.💿Dois discos que tenho no repeat. O da Jamila Woods é pura poesia e R&B, sem falar na capa linda. O do Luquinhas da Maglore é uma forma de me reconectar com Minas de um jeito lindo e também poético.
Obrigada por ler até aqui e até a próxima ✨
"Mequetrefe" está entre as minhas palavras favoritas da vida! Amei o texto <3 e obrigada pela indicação, querida
Que viés lindo, agora olharei para os nomes e sobrenomes de outras formas 🤍