Há algo de aterrorizante na materialização das coisas. Ver e sentir são os antídotos da esperança, as provas cabais de que qualquer possibilidade contrária já se esvaiu. O nódulo que aparece no exame, o número que insiste em diminuir na conta bancária, aquela pessoa que você daria um braço pra não encontrar e brota logo ali, na sua frente.
Olho no espelho e não apareço. Dou de cara com uma estranha, às vezes com mais olheiras do que me lembrava, sempre mais descabelada do que apostaria. Toco bochechas, nariz, coço os olhos, mas continuo encarando a versão da Nathália alternativa. Deve ser aquela do multiverso, uma Alpha Nathália às avessas. Nenhuma luta interdimensional se materializa na minha frente, não há nada, nem todo lugar, em nenhum momento. Só um rosto estranho que paira sobre a pia do banheiro.
Entrei num processo de dissonância corporal, em que eu pareço seguir um ritmo, meu corpo outro. Eu com minhas expectativas, o corpo com a realidade nua e crua, a mil por hora, o tempo todo. O pior problema de física possível pra uma pessoa com altas questões de autoimagem. Em que ponto da estrada eles se encontram?
Isso porque cresci, como toda menina, com mensagens totalmente conflitantes sobre o corpo. Em uma família muito religiosa, é fácil cair na narrativa do não olhar, não tocar, é pecado, tudo é sujo, é “do mundo”, vai pro inferno. Ao mesmo tempo, o corpo é seu templo. E quem é imune aos padrões de beleza ocidentais, que atire a primeira pedra.
Então veio o comer emocional, marcando meu corpo num ciclo aparentemente sem fim. Sinto, como, engordo, como porque me acho feia, engordo mais, entro em dieta restritiva, emagreço horrores, volto a comer e a engordar. Foi só aos 34 anos que comecei a reconhecer esses padrões. O comer os sentimentos e o medo de me olhar nos olhos.
Depois de voltar pra terapia e começar um acompanhamento de nutrição intuitiva, estou achando meu caminho de volta pra mim mesma. Parei de entrar no elevador de costas. De passar correndo pelos espelhos da casa. De escovar os dentes com o armário aberto. De usar sempre as mesmas roupas. Tudo em nome de “não me decepcionar”. De vez em quando me pego ali no reflexo, faço um aceno com a cabeça e sigo com meu dia.
O título desse texto me veio assim que lembrei de “Soul Meets Body”, do Death Cab For Cutie. Eu gosto muito de entrar no Song Meanings porque é aberto a comentários de qualquer fã que queria interpretar o que significa uma letra específica. E o Ben Gibbard começa logo cantando:
Eu quero viver onde a alma se encontra com o corpo
E deixar o sol me envolver com seus braços e
Banhar minha pele na água fresca e limpa
E sentir
Sentir como é ser novo
Há muitas interpretações pra essa canção. Elas vão de morte ao amor, passando até por uma tese sobre a desigualdade social. Me parece uma daquelas músicas que podem significar tudo e nada ao mesmo tempo. Tem quase 20 anos que eu ouço “Soul Meets Body”, mas agora me bateu essa sensação de busca pela leveza do existir. Uma espécie de renascimento para o novo que só existe em quem está zerado e ainda não passou pela vida. Às vezes dá vontade de voltar àquele tamanho diminuto e tenro que não sofreu traumas e não carrega cicatrizes, mas não é assim que funciona.
Terra estrangeira
A gente tem um medo danado de habitar o próprio corpo, como se território estranho fosse. E não deixa de ser. O terror que é se apalpar, se encarar sem roupa, se ver em fotos é real pra muita gente. Não é todo mundo que se mudou de mala e cuia para a Terra da Autoaceitação, há um longo caminho a se percorrer até lá e, bem, você já viu o preço da gasolina?
Não se trata de uma relação conflituosa apenas para mulheres, claro. Outro dia vi um vídeo que desde então mora na minha cabeça: dois amigos de longa data que tiram a roupa um na frente do outro. Eles se pintam em telas e conversam sobre suas relações com o próprio corpo. Nenhum dos dois é pintor e nem é esse o objetivo. Suas pinturas beiram o infantil, o que casa bem com a sensação de descoberta e de caminhos proibidos que os dois expressam ao se verem nus.
Elogiam o corpo um do outro, comentam o que falta, o que sobra, se desinibem ao falar sobre questões íntimas. Não tem nada a ver com seu sexo - aquele borrão que aparece na tela do YouTube, quase que em uma metáfora sobre a invisibilidade dos nossos corpos. É sobre o momento em que tiveram vergonha de ser como são.
Ouvi outro dia num podcast que meninas começam a expressar desejo de mudar seus corpos a partir dos quatro anos de idade. QUATRO. É chocante e revoltante em muitos níveis, mas se você parar pra pensar, faz total sentido. Minha filha de três já tem a forma física comentada por familiares - se engordou, se emagreceu, se cresceu ou não.
Comecei a lembrar de todos os momentos em que o meu corpo me foi negado. O medo sussurrado ao pé do ouvido desde muito nova - mas vai mostrar as pernas? E o que os outros vão pensar? Não tem medo de ir pra piscina? Certeza que vai usar short pra fazer educação física? Seria melhor ir de calça, mais correto. Imagina dançar na festa junina - a festa daquele santo?
Carne em festa
Isso se escancara no Carnaval. Nunca pulei, nunca me fantasiei. Sempre tive pra mim que a festa não tem muito a ver comigo, apesar de adorar o feriado e ver todo mundo feliz. É só uma questão de noção de diversão: calor e música alta não combinam com quem tem alma idosa. Nunca tive pique pra inventar uma roupa descolada, tudo me parece mais propício a corpos alheios.
Mas me encanta a libertação das vestimentas tradicionais, as portas abertas para o brincar, o seduzir. A dança sem pudor, a maquiagem que escorre na intensidade do sol, o xixi em lugares inóspitos, a bateria que sempre cabe mais um ritmista (que normalmente estaria batendo é ponto no escritório de contabilidade). Entre um episódio e outro de uma série, passo para ver os foliões nos canais de TV, deixando os problemas pra outro dia, se apropriando do momento. É bonito de se ver!
Ousar existir
Todo corpo existe, claro. É material, mas não quer dizer que ocupa espaço. Nem todo corpo se permite ou se sente bem-vindo. O corpo inexistente é aquele que até para diante da vitrine, mas não entra na loja. É aquele que olha ao redor e não se reconhece nas outras formas e tons de pele. Não ousa disputar o descanso de braço no cinema pra não se impor. É o que vai pra praia, mas não tira o short.
E tudo bem. Ninguém é obrigado a ser um bastião de amor próprio, ter vergonha é perfeitamente aceitável. Ser e estar, nesses casos, se tornam os verbos mais potentes que existem. Ousar existir, ocupar espaço, se permitir ser não deveriam ser condicionais a peso, idade, cor da pele, status social. Mas como seres sociais que somos, seguimos medindo valores e pessoas assim.
Daí o espelho cruel. Não há 4K melhor que o reflexo dos nossos armários de banheiro, retrovisores e telas de celular. A proximidade é inevitável, o impacto é real. Reconhecer quem está do outro lado é abraçar aquela pessoa que acordou atropelada por um trator - mas nada que um café, um banho ou a terapia não resolvam.
LINKS DA SEMANA
Meu marido, Daniel, reativou o blog. Ele é escritor e agora está “publicando” de um jeito diferente: gravando álbuns que diluem os limites entre música e literatura. Não é um audiolivro, não é spoken word. Ele lançou recentemente mais uma parceria com a cantora, compositora e produtora Sarah Abdala, chamado “Tudo Que As Vozes Contaram”, e será a primeira parte de um romance bem ambicioso que eu não vejo a hora de vocês conhecerem. Orgulho define, sabe?
Comecei a editar a newsletter do Série Maníacos, um dos maiores sites do Brasil dedicado à TV. O Corvo de Prata é uma cartinha destinada a quem quer saber de novidades do setor, o que estreia e o que faz sucesso nos streamings e mais. Alegria imensa estar falando sobre algo que eu amo tanto!
Continuo publicando a newsletter do Tenho Mais Discos Que Amigos!, a
. Toda semana, muitos lançamentos, charts das plataformas e notícias.Entrevistas recentes que publiquei! Tem pra todos os gostos: Inhaler, Tinashe, Freya Ridings, Cigarettes After Sex, Vedo, Oscar Anton.
Não sou muito fã de álbuns ao vivo, mas esse da Carole King gravado no Central Park tá especial. 50 anos depois, tá sendo lançado o filme, mas o disco já te transporta pra 1973 facinho, facinho.
Cara, eu terminei teu texto e fiquei alguns bons minutos parado olhando pra tela. Só posso dizer que é o tipo de texto necessário, que vai falar com muitas pessoas (como falou comigo). Incrível, minha amiga. Quando eu crescer quero escrever igual você!
Dia desses estava conversando com uma amiga sobre meu trauma com exercício físico e me dei conta que ele existe porque essa era uma coisa que eu supostamente não deveria fazer. Até meus 22 anos mais ou menos eu era uma pessoa magra, mas como eu sempre fui grande (quadril grande, bunda grande, ombro largo etc) eu me achava gorda (não que ser gorda seja um problema, mas estou pontuando p ilustrar minha questão). Eai que desde a escola eu achava que não podia praticar nenhum esporte, me sentia constrangida pq não tinha fôlego e atribuía isso ao fato de me sentir enorme (e na verdade eu tenho asma). Nunca dancei quadrilha, embora eu quisesse, porque achava que ninguém ia querer dançar comigo. Hoje eu me vejo como uma pessoa gorda, porque eu realmente engordei e tudo bem, não me sinto feia por isso, pelo contrário, mas com tantas mensagens de que esse não é o corpo ideal, essa é uma luta constante, né? E entendendo isso hoje tenho tentado fazer as pazes com essas coisas que criei inimizade, sabe? Talvez me exercitar seja um costume e eu só precise de condicionamento, não necessariamente emagrecer. Enfim, espero que não tenha ficado confuso kkk Seu texto me fez lembrar disso, é uma questão que tenho tentado amadurecer. Obrigada!