“Tudo é cópia”.
Nora Ephron repetia esse mantra, recebido da mãe, aquele tipo de verdade absoluta passada de geração em geração. Gosto da dualidade dessa afirmação: everything is copy.
Por um lado, há a interpretação óbvia: nada se cria, tudo se copia. Toda arte é produto das que vieram antes, como precursoras de um caminho em que é preciso abrir estradas na base do facão. Expandir percepções, mudar mentalidades, desafiar paradigmas leva tempo e a arte vai moldando isso aos poucos.
Parece aquelas placas tectônicas que se movem, meio centímetro a cada milênio, como quem não quer nada. Aí quando você nota, África e Brasil estão separados por 7777 km - um número que parece cuidadosamente calculado pelo oceano Atlântico.
Nada se pierde, todo se transforma, já dizia Jorge Drexler.
Nada de mim é original - sou o esforço combinado de todos que conheci, já dizia Chuck Palahniuk.
Mas há, também, outra visão possível. Tudo é copy - escrita, trabalho braçal, texto talhado em papel, criação. Esse é um termo amplo que pode significar uma infinidade de coisas, mas todas escritas, redigidas por alguém. Todas requerem bunda na cadeira e muitos toques no teclado, levando à verdade inescapável: para que um texto brote, é preciso que alguém cate as palavras, como quem seleciona feijões, escolhendo a dedo. O que torna a escrita ao mesmo tempo desafiadora e recompensadora é a noção de que, mais do que encontrar as palavras certas, é preciso descartar todas as excedentes.
Escrever é a arte de cortar palavras, já dizia Drummond.
A única saída é a travessia, já dizia Robert Frost.
Tudo é performance.
Houve uma época em que a gente considerava uma performance um acontecimento artístico, uma provocação dos sentidos. Marina Abramovic sentada no meio de uma galeria era, por si só, arte. Um cantor que entrega tudo, uma atriz que desaparece no palco para dar lugar à personagem. Performers, todos eles.
Mas palavras, também, se transformam. Agora, performar deixa de ser um neologismo inventado, exclusivo das artes, para abarcar também as metas das empresas, os rendimentos dos atletas e todos nós. Performamos nas redes sociais, no trabalho, na social no bar, no app de pegação. Buscamos aquela validação que só um textão no LinkedIn conquista - aplausos dos nossos pares, a sensação de que acrescentamos algo de novo ao debate. Usamos essas mesmas palavras para pingar a nossa própria gotinha no rio do conteúdo, prontamente levada embora pela correnteza. Uma nova gota se faz necessária. Há muito a jorrar, a sede é tanta.
De substantivo, performance virou verbo, daqueles bem verborrágicos, insaciáveis. Esse palco não apaga as luzes nunca, a não ser pelo raro fechar da cortina entre um espetáculo e outro.
Tudo é produto.
Reza a lenda que quando uma plataforma ou rede social é gratuita, o produto é o próprio usuário.
Daí o fenômeno do personal branding.
Daí que todo mundo que você conhece está tentando pagar de especialista em alguma coisa, driblar o algoritmo para ser visto como alguém relevante no oceano de stories e reels.
Daí que os cursos estão lotados, as mentorias idem, tem masterclass brotando em árvore, tem e-book a perder de vista, newsletter então…
Não que isso seja ruim, há muito a ser compartilhado, aprendido, passado adiante. Deus sabe que há público pra tanto, há seguidor pra todo mundo. Cá estou eu batendo cartão, afinal.
Mas nada explicita tanto a nossa precarização quanto a ideia de que todo mundo pode ser o próprio chefe, basta produzir, postar, interagir. Saímos de um trabalho no horário comercial para assumir o expediente em outro, rolando a tela infinitamente noite adentro, funcionários disciplinados que somos dessa empresa de nós mesmos.
Você é um produto de um produto de um produto, já diria Chuck Palahniuk.
Tudo é link.
Há uma história que me fascina e costura todos esses tópicos, por incrível que pareça. Em 2017, o Instituto Tomie Ohtake sediou uma exposição de Yoko Ono. Uma das peças era um mero telefone fixo, instalado próximo a uma placa que dizia “Quando o telefone tocar, saiba que sou eu”. Somente Yoko tinha o número. Eis que, durante a montagem de toda a exposição, o dito cujo toca. Poderia ser a artista ligando para agradecer os trabalhadores pelo empenho, sabe-se lá. Mas no fim, era um representante da Net querendo vender, claro, produtos e serviços. A gente mira na arte e acerta no capitalismo, pelo visto.
Gosto de imaginar a pose de quem atendeu, um turbilhão passando pela cabeça. O que se diz a Yoko Ono, afinal? Ao pegar o fone, é melhor falar em Português, como quem não quer nada, ou já chegar com um hello, quebrando o gelo? No mínimo, a ocasião pede uma limpada na garganta - a gente não quer pigarro no caminho da conversa. Fazer parte de uma performance artística torna todos nós, também, um pouco artistas. Nunca saberemos se o estreante do telefone ficou aliviado ou decepcionado por não ter Yoko Ono do outro lado da linha - essa pode ter sido a única ocasião em que alguém ficou feliz de receber uma ligação de telemarketing, sabe lá. A pressão faz isso com a gente.
Tudo é lead.
A gente dá o e-book com uma mão, pega o e-mail com a outra. Tudo é conexão, dizem. E os “e”s viraram moeda de troca na economia do conteúdo.
Lead pode valer dinheiro, então colecionamos. Montamos bases de dados e mailings, em busca da tal audiência.
Mas lide é, também, o suprassumo do que nos acontece. O resumo de uma notícia jornalística, aquele primeiro parágrafo que sumariza o cerne da questão.
Porém, quando tudo é indispensável e prioritário, nada o é, de verdade. E quando tudo é performance, como diferenciar a atuação do verdadeiro, o CPF do CNPJ?
Tudo é nada.
A gente sobe na roda de hamster por vontade própria, esperando o próximo choquinho de dopamina. O ciclo é infinito. Vamos viver a vida para depois enlatá-la em conteúdo, criamos personas e ditamos como elas se portam na crítica de cinema no Letterboxd, no textão com consciência social, no grupo da firma, no churrasco com os parças. Consumimos e regurgitamos novos posts, comentários, stories num ritmo que torna insustentável descer da roda.
O loop é ao mesmo tempo desesperador e reconfortante, o eterno “Deus me livre, quem me dera”. Odiamos as horas perdidas na barra de rolagem infinita, mas amamos ter a opção de entrar em modo alfa e só ver reels até o dedo cansar de fazer o movimento de subir. É o famoso “hoje eu mereço” (todo dia), basta ignorar o relatório de uso de tela do celular e pronto.
Ignorance is bliss, já dizia o ditado.
Tudo é agora.
O texto de duas semanas atrás está velho. O disco da Beyoncé já caducou, o da Taylor é notícia dormida, a previsão dos filmes do Oscar 2025 já começou e você que fique esperto.
A treta do dia, a briga do BBB, a série da Netflix que todo mundo maratonou em três dias e você aí comendo mosca.
A votação do Projeto de Lei que você precisa repelir no site do Senado. O bate-boca no grupo da família, do condomínio, da faculdade e do trabalho.
Renovar o guarda-roupas, o botox, o passaporte.
Preparar as marmitas fitness da semana.
O saldo do banco, o banco de sangue, a sangria pro jantar.
É tudo pra ontem.
O tempo ruge e a Sapucaí é grande, já dizia Giovanni Improtta.
Sabemos. Sambemos.
💭 Imagina mais
Existe um documentário sobre Nora Ephron, que eu revi depois de reler O Amor é Fogo - nada menos que uma tradução da vizinha de Substack, a Fal Azevedo. O filme foi feito pelo filho de Norah e do jornalista Carl Bernstein, investigando porque a mãe escondeu o câncer que a levou. Trailer aqui.
Se você, como eu, é fãzoca de
, fique sabendo que ele tem uma newsletter gratuita no Substack - a , como o nome entrega. Mas também vale o adendo: o homem escreve com bastante frequência, prepare sua caixa de entrada!Obrigada por ler! Até a próxima ✨
eu amei esse texto
(nada mais pra falar)
Adorei esse texto! estou divulgando na minha newsletter https://eatyournuts.com.br !