Imagino que seja um desejo em comum de quem passou por algum tipo de abuso ou trauma: a vontade de voltar ao ponto anterior a tudo aquilo acontecer. Uma espécie de restauração do sistema, um backup que te permite retornar ao último salvamento, quando tudo estava bem e o mundo não havia sido invadido por um vírus malvado.
Essa é a analogia que faço na terapia. A experiência dolorosa parece uma mancha, daquelas que a gente vê em comercial de sabão em pó. Mas nas propagandas da TV, aquele removedor da embalagem rosa ou então bolinhas coloridas entram em ação, embaixo d’água, como um pequeno exército de limpeza. Lavou, tá novo.
Só que não.
A mancha permanece. Às vezes, mais desbotada, é verdade. Mas nem sempre. Como num pesadelo para o Omo, ela ganha tons variados. Ora um bege clarinho, indolor; ora um vermelho vinho, carnal e vivo, daqueles que respingam e sangram para outras dores na vizinhança. É a natureza da mancha. Ela se espalha, até quando já parece contida.
Arlo Parks começa seu novo disco, “My Soft Machine”, declamando um poema sobre o desejo de ser livre de machucados, o que torna essa sensação ainda mais palpável. A cantora inglesa acaba de anunciar seu primeiro livro de poesias, do qual dá pra considerar que a faixa de abertura “Bruiseless” é um bom prelúdio.
Eu gostaria de não ter nenhum hematoma
Quase todos que eu amo já foram abusados, inclusive eu
Sinto tanta culpa por não ter conseguido proteger mais pessoas do mal
Nós ouvimos Loomer, caroços na minha cabeça que eu luto para suavizar
A pessoa que eu amo tem paciência comigo
Ela está me alimentando com queijo e estou feliz
Como uma peônia rasgada pela corrente de uma moto suja
Eu só queria ter sete anos e ser inocente
Caindo sobre o guidão
Espirros de pólen sobre arranhões
Eu só queria que meus olhos ainda estivessem bem abertos.
O poema tem só 1 minuto num trabalho de 40, cheio de beats delicinha, refrães chiclete e até participação de Phoebe Bridgers, o melhor arroz de festa dos últimos anos. Mas tal qual o hematoma a que Arlo se refere, “Bruiseless” não desvanece. São versos que ficam ecoando, mesmo depois que “My Soft Machine” acaba.
Essa não é a primeira vez que Arlo Parks abre o jogo sobre algumas dessas feridas. Seu disco anterior, “Collapsing In Sunbeams”, é profundamente confessional, um relato intenso sobre amadurecer sendo mulher preta, filha de imigrantes em uma Inglaterra dividida, enquanto navega amores e desilusões com outras mulheres. Igualmente, aquele também começava com um spoken word íntimo.
Mas, sendo bem sincera, meu grau de identificação com Parks é baixo. Nunca morei fora do sudeste, sou branquinha e hétero, mas desde seu primeiro disco, não paro de ouvi-la. Arlo fala com qualquer um que esteja disposto a ouvir. Não é preciso ter vivido um abuso para se conectar com esse desejo de ter sete anos e nenhuma culpa. De se sentir um papel em branco, pronto para se formar de novo, se preencher de experiências menos dolorosas.
Esse contraponto, do limpo x sujo, é uma associação minha, mas algumas noções de limpeza são problemáticas. A associação a questões raciais é inegável - existe um motivo porque o orçamento de alvejante para os robes da KKK deve ser astronômico. A narrativa religiosa é impregnada dela, a ideia de que é preciso se expurgar dos pecados para entrar no reino dos céus - quando são elas, as transgressões, que fazem de nós quem somos.
O que Arlo evoca aqui é a noção do novo. Do pêssego cheio de vida, suculento e doce - bruiseless -, momentos antes de cair da árvore e se machucar. Um recorte no tempo em que tudo parecia melhor, menos doído, mais possível.
Em “Hurt”, um dos pontos altos de “Collapsing In Sunbeams”, Parks canta sobre depressão com um olhar quase solar - talvez venha daí o título do disco. Para um personagem chamado Charlie, ela oferece um ombro amigo:
Eu sei que você não consegue se desvencilhar
De nada no momento
Mas apenas saiba que não vai doer tanto
Não vai doer tanto para sempre
Mas, num plot twist azeitado pela experiência da vida adulta, ela mesma canta, já caminhando para o fim de “My Soft Machine”:
Eu sei que algumas coisas não ficam mais fáceis
Eu sei que algumas coisas doem para sempre
Não é de hoje que a gente processa as dores na música pop. Eu sou da época em que Eminem fazia isso limpando o armário. “Cleaning Out My Closet” é uma música dolorosa sobre uma relação complicada com a mãe do rapper. O clipe passava direto no TVZ, aquelas cenas de desamparo e negligência parental, culminando com Eminem cavando uma cova - a sua? a da mãe? - embaixo de uma chuva torrencial, perfeita pra descer aquele arroz e feijão entalado na hora do almoço da família brasileira.
Eminem processa seus traumas com raiva. Cada verso, uma facada. Agressivo em um flow que, mesmo que verborrágico, deixa tudo às claras, Marshall é assim: cru, intenso.
Arlo, por sua vez, é a culminância do pop etéreo - do qual Billie Eilish talvez seja o maior, porém não único expoente. Seus vocais suaves são o que tornam as músicas como segredos, sussurrados ao pé do ouvido. O que poderia diluir sua força se torna, na verdade, uma das suas maiores potências. Tem horas que a gente quer a nossa música como um colo amigo.
Talvez Arlo Parks esteja nos mostrando, em tempo real, como é aprender a conviver com as dores da vida adulta, mesmo que elas sejam feridas antigas (e mesmo que ela tenha 22 - VINTE. E. DOIS. - anos!). A aceitar os hematomas e cicatrizes. Meu vô Pandeló dizia que ao velho não se pergunta se tá tudo bem, mas sim onde dói. É possível que isso seja verdade de todos nós.
Em algum momento de “My Soft Machine”, Arlo Parks parece conviver e aceitar o que passou, o que quer que seja. É bem provável que daria pra ser com menos dor. Mas, inevitavelmente, fez dela quem é.
No fim das contas, tudo que podemos esperar é torcer pra que a gente aprenda com os tropeços, os arrastões e todas aquelas manchas que ficam. Now I just wanna eat cake in a room with a view, ela canta. Quer algo mais adulto que isso?
Falando em ser, ahm, gente grande, meu amigo André Felipe de Medeiros virou substacker, transformando seu excelente podcast Pós Jovem em uma newsletter. Com os convidados, ele sempre destrincha os dilemas de viver esse limbo - não se considerar totalmente maduro, mas certamente não ser mais um jovenzinho mais. Na cartinha, traz essa mesma sensação de um abraço quentinho, tal como as músicas da Arlo. Recomendo fortemente.
Outra dica preciosa é a
, da , do poema acima. Essa edição aqui tá especialmente boa.
Muitas memorias desbloqueadas com a parte de cleaning out my closet no tvz!
SORRY MAMMA I NEVER MEANT TO HURT YOOOUUU
e esse texto foi um colo amigo pra mim. obrigada <3