Às vezes é preciso lerigou, já dizia a princesa Elsa. A gente se agarra a tanta coisa porque acha que é o que deveríamos estar fazendo, quem queríamos ser, o relacionamento que romantizamos ter. Existe tanta beleza em olhar pra uma situação e pensar: é, não vai dar pra mim hoje. Não estou pronta, não tenho autoconfiança para tal, não tenho tempo, dinheiro, alguém pra me ajudar, meio de transporte, limite no cartão ou simplesmente não quero.
O primeiro "não vou porque não quero" que eu falei foi tão bom! Claro que quem ouviu o "não" pensou diferente. Claro que não dá pra falar isso pra todo mundo, todo dia. Mas nú, que delícia.
Ano passado eu "audioli" (também conhecido como "ouvi") o livro da Shonda Rhimes em que ela conta como parou de dizer "não" para as coisas, apenas porque podia. Eu também precisava dessa lição: aprender a dizer "sim", mesmo quando tenho medo, síndrome da impostora ou dúvidas.
O relato da Shonda é importante porque mulheres poderosas aprendem que precisam se cercar, construir um castelo ao redor de si. Não tenho nem perto do poder da unha encravada do dedo mindinho da dona e proprietária da TV americana, mas toda vez que estou atrasada e ainda assim digo "sim" para brincar com a minha filha, me lembro dela.
Agora, o "não" é o tipo de coisa que a gente se sente culpada de assumir. Pode ser, também, negar companhia, aprovação alheia, oportunidade de aprender, de ganhar dinheiro. Pode significar que, na próxima oportunidade social ou profissional, você será deixada de lado. É preciso bancar cada uma dessas três letrinhas - porque, como bem lembra Shonda no livro, dizer "sim" para algumas coisas significa dizer "não" para outras.
Dizer não até para o que é bom
Daí eu achei que valia repensar o meu compromisso diário de escrever as Páginas Matinais. Há pouco mais de três meses, escolhi tirar a poeira do livro O Caminho do Artista, que tinha ganhado há tempos e sequer tinha folheado. Cumpri o programa de 12 semanas que Julia Cameron propõe, fiz os exercícios, me levei para passear (quando deu), escrevi as três páginas pela manhã (também, quando deu). Fiquei feliz de ter passado pela experiência e agora, no fim desse processo, consigo reconhecer um monte de coisa que irei aproveitar - meu livro tá todo grifado! -, mas enxergar também um monte de técnicas, conselhos e ensinamentos que simplesmente não fazem sentido pra mim. E tudo bem.
No livro, Cameron trata as Páginas Matinais como uma ferramenta indispensável para você se reconectar com seu artista interior, para no mínimo se ouvir pensar. Ela recomenda acordar mais cedo, pegar papel e caneta e só… jogar na página o que está na sua mente, estilo fluxo de consciência mesmo. Não existe pauta ou pergunta a ser respondida. Existe apenas um momento de conexão interna que, reconheço, é muito valioso.
Mas não se encaixa na minha vida agora. Não é questão de priorizar, de fazer escolhas. É questão de que eu não controlo o número de horas que durmo numa noite, porque tenho uma filha pequena. Dependendo de como foi a madrugada, eu escolho dormir mais meia hora do que me arrastar até a mesa com meu caderninho. Até tentei, não rolou. Embora a própria autora também seja mãe, não acho que ela tenha escrito o livro pensando naqueles primeiros anos da maternidade, em que não dá pra "levar seu artista pra passear" sem mover céus, terra e mar pra que isso aconteça por míseras duas horas por semana.
Reconheço, então, a derrota em cumprir os objetivos do programa como foi pensado. Mas ler O Caminho do Artista me fez avançar muitas casas no tabuleiro - o simples fato de eu cogitar ler um livro em que me considero, possivelmente, quem sabe, talvez uma artista, é algo impensável pra Nathália de dois anos atrás. Pronto, cumpriu seu papel. Precisa ser tudo ou nada?
O que te traz alegria?
Quando a vida vira uma lista de tarefas a ser cumprida, passa a ser só um bullet journal ambulante, um método Pomodoro com pitadas de GTD.
Antes de desistir de manter tudo em ordem, Marie Kondo ensinou o mundo a só manter na vida aquilo que te traz alegria. Ela preferiu os três filhos à casa limpa, acho que foi uma decisão acertada.
É uma visão bem Poliana de que é possível escolher nossas prioridades com base no prazer, na felicidade, quando no fim do dia, só estamos gratos por ter sobrevivido.
Talvez haja aí uma lição sobre equilíbrio. Viver não precisa ser só sobre controle, sobre fazer e acontecer. Mas também não precisa ser ao léu, entregando para o universo o resultado das coisas.
Por isso, persisto.
Ouvi uma entrevista com o Ira Glass em que ele comenta a importância de continuar criando, mesmo - e talvez especialmente - quando você não ficou bom (ainda). Aliás, Ira Glass é o dono e proprietário da rádio americana, e ainda assim reconhece momentos em que ele foi um repórter bem ruim. Ele fala sobre como é injusto nos medirmos com a mesma régua aplicada aos outros, que já realizam esse trabalho em nível profissional há mais tempo. Ouse ser um iniciante.
A equação do tempo investido alugou um triplex na minha cabeça há uns meses. Talvez porque eu também não me sinto dona do meu próprio tempo agora, sentar pra escrever - essa newsletter, qualquer coisa - me parece um luxo. Mas falta muito pra ficar mais fácil? Pra ir mais rápido? Pra ficar bom?
É bem possível que tenha chegado a você o número das 10 mil horas necessárias para de fato aprender alguma coisa. A teoria é de um psicólogo sueco, Anders Ericsson, que calculou mais ou menos quanto tempo leva pra se tornar EXPERT em alguma coisa. Trata-se de uma média calculada a partir do tempo investido pelos profissionais de destaque. Agora faz a conta aí de quantos anos de prática diária isso daria - eu espero, pois sou de humanas e não me dou ao trabalho.
A teoria das 10 mil horas foi amplificada, de forma errônea, por um livro - “Outliers”, do Malcolm Gladwell -, aí já era, virou cânone. Mas sinceramente, acho um baita desserviço. Porque embora a ideia seja se tornar uma referência em seu campo de atuação, você vê essa marca astronômica de horas e até desiste antes de começar, de sequer tentar. É uma falácia tão grande que eu preferiria que fosse “10.000 Hours”, aquela música do Justin Bieber.
Mas é preciso tentar
Estava ouvindo hoje cedo o podcast Naked Lunch, que envolvia duas das minhas pessoas favoritas no mundo: Phil Rosenthal e Pamela Adlon. Ele, criador de Everybody Loves Raymond e estrela de Somebody Feed Phil, da Netflix; ela, conhecida por séries como Californication e Louie, mas que nos últimos anos atuou, dirigiu, escreveu e fez tudo em Better Things, a série mais incrível que ninguém assistiu. Eles: brilhantes.
Daí Pamela relembra o dia em que tinha escrito umas cenas preliminares do que viria a ser Better Things, foi à casa de Phil e pediu pra ele ler o roteiro e dizer se tinha potencial. Ele disse que sim, pois não é maluco.
MA-NO.
A Pamela Adlon. Insegura. Com Better Things. Sabe? Quem somos nós pra ousarmos não ter insegurança? Ela não sabia se era bom, foi lá e fez. Depois ganhou um Peabody Award, pra largar de ser boba. E Phil diz: na dúvida, faça. Você precisa tentar. Vai que dá certo? O "dar certo" é relativo: ficar rica, famosa ou simplesmente conseguir fazer. Alguma coisa, qualquer coisa. A nota de corte pode ser baixa, não tem julgamento nenhum aqui.
Quando eu sento pra escrever, é horrível e delicioso ao mesmo tempo. Sinto as palavras fluindo dos meus dedos, ora vagarosamente, ora num fluxo constante, mas sempre existindo - que é o objetivo final. Viu? Nota de corte baixíssima.
Mas não é fácil pra mim sentar com um teclado à minha frente sem lide, sem apuração, sem triângulo invertido, sem entrevista pra transcrever. Só uma página em branco, um cursor que insiste em piscar. Talvez como forma de me lembrar que eu devo, também, insistir em digitar.
Esse vai e vem mental consome muito mais horas do que as que eu passo, de fato, escrevendo aqui. Por isso, essa newsletter tem uma frequência tão inconstante. Mas sigo tentando. Se não publicar, revisar. Se não revisar, escrever. Se não escrever, pesquisar. Se não pesquisar, ler. Um dia de cada vez. Uma letra de cada vez. Devagar. E sempre.
LINKS
Quase quando eu ia publicar esse texto, chegou na minha caixa de entrada a news do
, , sobre mais ou menos o mesmo tema - só que com muito mais carisma.Na
, a falou sobre o ato de colocar no mundo esse tanto que caracteres que a gente insiste em escrever.E minha irmã,
, traduziu muito do que eu queria escrever sobre cansaço e viver como uma lista de afazeres, na .
Fico feliz em saber que alguém além de mim, ama também a série Better things
Boa demais essa sinergia!!! Temos de saber desistir de umas coisas pra sobrar tempo e energia pra outras mesmo. E gostei muito da sua experiência com o método Caminho do Artista. Muitas vezes a gente idealiza um "perfeito" do outro mas na real o "perfeito" é do nosso jeitinho.