Carl Sagan era sagaz. Não porque “apenas” porque deixou uma marca duradoura no seu campo de atuação - a astronomia -, mas também porque conseguiu explicar ciência para gente como eu, leiga no assunto. Numa era pré-divulgadores científicos de YouTube e TikTok, ele ia para a TV ensinar ideias complexas para o americano médio.
Foi de Cosmos, o programa de TV, que veio a ideia do Calendário Cósmico. Era um recurso de roteiro ou uma teoria bem fundada? Não faço ideia, pois não sou pesquisadora (valorizem os pesquisadores!). Mas a realidade é que Carl encontrou uma forma bem didática de explicar como a história do universo progrediu, ao mesmo tempo em que explanou a nossa total desimportância no grande esquema das coisas.
Trata-se de uma representação que comprime a vasta escala temporal do universo em um ano do nosso calendário atual, onde o Big Bang marca o início do primeiro segundo de janeiro. A formação da Via Láctea e do sistema solar ocorre em meados de maio, enquanto a Terra se forma em setembro. A vida na Terra surge em setembro, mas os primeiros seres humanos só aparecem nos últimos minutos do dia 31 de dezembro. As primeiras colônias na América surgiram há um segundo! Isso ilustra de maneira impressionante o quão brevemente a humanidade existe em relação à vastidão do tempo cósmico.
De acordo com esse cálculo, uma vida humana inteira, de 100 anos, dura o mesmo que um piscar de olhos - essa metáfora é muito real. Outra comparação que é batata é a ideia que somos pó de estrela. Boa parte dos elementos do corpo humano e quase tudo ao nosso redor vem de processos estelares - o oxigênio e os minerais essenciais são lançados no espaço por supernovas. Mas também é poético pensar na nossa dimensão diante de tudo que há no universo - e no quanto conseguimos realizar com tão pouco tempo.
Jorge Drexler - outro homem de ciência - cita isso lindamente (como sempre) em “Polvo de Estrellas” (com inspiração em um poema de “Cántico Cósmico”, livro de Ernesto Cardenal - um homem de fé).
Se aprende no berço, se aprende na cama,
Se aprende na porta de um hospital.
Se aprende de repente,
Se aprende no começo e às vezes se aprende recém ao final.
Toda a glória é nada
Toda vida é sagrada.
Uma estrelinha de nada
Na periferia
De uma galáxia menor.
Uma, entre tantos milhões
E um gão de poeira girando ao seu redor.
Não deixaremos rastro,
Só poeira de estrelas.
Abraço isso com alegria, porque por um lado, a consciência de nossa pequenez no universo pode nos proporcionar humildade e perspectiva. Ela nos lembra que nossas vidas individuais são breves momentos em meio a bilhões de anos de história cósmica. Essa humildade pode levar a um senso de unidade e empatia, e a questionar a importância de conflitos mesquinhos e divisões infundadas.
Por outro lado, essa mesma noção de efemeridade pode desencadear uma sensação de futilidade. Quando confrontados com a brevidade de nossa existência, muitos de nós se agarram desesperadamente a realizações e posses materiais como se fossem duradouras, ignorando a inevitabilidade do tempo que avança, quer a gente queira ou não.
A busca por significado e propósito na vida é intrinsecamente humana e mexer com esse norte balança qualquer bússola. Nossa necessidade de atribuir importância a coisas que não são duradouras reflete nosso desejo de deixar uma marca no mundo, de sermos lembrados, de transcender o efêmero. Isso não só é bonito, como é verdadeiro.
De muitos modos, conseguimos tornar nossas breves vidas de 0,23 segundos cósmicos em algo de importância. Se não para o universo, para o pequeno número de outras vidas que nos orbitam. Nenhum ser humano passa pela existência em deixar sua marca em alguém, com sorte em muitos alguéns. É isso que Carl Sagan fez há muitos anos e o que continuamos tentando fazer.
Mas temos, também, a leveza de saber que nosso tempo aqui é breve e nos ajuda a colocar as coisas em perspectiva. Não a diminuir nossos problemas, mas a entender que tudo é passageiro, em especial aquele dia ruim que você tem no trabalho.
O final de The Good Place é perfeito, mas não vou entregar spoilers. Vou deixar só uma frase do Chidi - outro homem de ciência - que resume bem tudo isso. “Imagine uma onda no oceano: você pode vê-la, medi-la, sua altura, o jeito que a luz do sol refrata… e então ela se quebra na costa e desaparece. Mas a água ainda está ali. A onda era só uma forma diferente de a água existir por um tempo breve. Essa é uma concepção da morte para um budista. A onda retorna para o oceano, de onde veio e onde deve estar”.
Não sei pra você, mas pra mim há um consolo na temporalidade das coisas. Como diz Joan Didion, “a vida muda rapidamente. A vida muda num instante. Você se senta para jantar, e a vida que você conhecia termina”. Sem querer ser catastrófica, mas já sendo, aproveitemos nossos míseros segundos. Eles são tudo que temos.
Sejamos água.
💭 Imagina Mais:
📺 Para quem quer conhecer uma versão mais moderna do programa de Carl Sagan, recomendo a série feita pelo Neil Degrasse Tyson para a National Geographic em 2014. Se chama Cosmos: A Spacetime Odyssey, que não está mais disponível na Netflix (uma remoção de catálogo que foi parar no Reclame Aqui, veja bem) e nem no Star+. Mas um link deve cair de algum caminhão pelas estradas da internet…
📼 A terceira & última & elogiadíssima temporada de Reservation Dogs chegou ao Star+. De nada.
🌀 A
escreveu lindamente e precisamente sobre aqueles períodos em que a gente fica meio bagunçada internamente - e a dualidade de querer resistir a isso e, ao mesmo tempo, arrumar espaço para que o caos exista.
Não é exagero dizer que o Carl Sagan mudou minha vida. Eu assistia Cosmos na TV Brasil quando era criança e fiquei obcecada! Aquelas coisas que ele falava eram tão novas e magníficas para mim, que me tornei fã! Vc já leu os livros dele? Eu li alguns, mas o Cosmos mesmo até hoje não li haha
lindo o seu texto! que sejamos gratos, humildes e saibamos usar a sabedoria para deixar coisas boas pra trás!