A Tati Bernardi tem um livro sobre a maternidade adequadamente intitulado “Você nunca mais vai ficar sozinha”. E é a mais pura verdade. Mães não conseguem sequer tomar um banho sem serem chamadas, quem dirá tirar uma tarde pra pegar um cineminha.
Não dá pra culpar minha filha, pra ser sincera. Tinha mais ou menos uns 10 anos que não ia ao cinema sozinha, algo que eu costumava fazer com certa frequência. Gostava, inclusive, de ir no impulso. Bastava um domingo meio sem graça pra eu entrar na primeira sessão disponível, podendo até ficar pra mais um filme depois. Pegava às vezes quatro ônibus, apenas pra conseguir chegar na única sala da cidade onde passava o que eu queria assistir. Outras tantas vezes, aproveitei a boa e velha sessão gratuita no cinema do centro de cultura da cidade. Algum clássico já em domínio público, com a possibilidade de ver numa tela maior que a da sala da minha casa. Bons tempos.
Não sou avessa a companhias, veja bem. Quando eu e Daniel começamos a namorar, víamos filmes juntos até à distância. Ele no Rio, eu em Petrópolis, cada um com a sua pipoquinha dando play ao mesmo tempo. Uma boa companhia salva até o filme mais sem sal do universo.
Tendo dito isso, admito que eu amo o ritual do cinema desacompanhada. Adoro escolher um filme só pra mim, comprar uma pipoca sem dividir com ninguém, voltar pra casa pensando com calma no que acabei de assistir. Por isso, quando comecei a ler “O Caminho do Artista”, sabia que uma ida ao cinema seria uma ótima opção para os passeios criativos que a autora propõe. E foi assim que eu fui parar num filme francês às 10h da manhã de um sábado.
Depois de subirem os créditos e acenderem as luzes da sala, eis que dois homens ficam de pé abaixo da tela e dizem: “bem vindos ao Cine Psiquiatria, vamos começar o debate”. Eu olhei para os lados, tentando identificar a mesma expressão de surpresa no rosto das pessoas por perto, mas elas não pareciam estar nem um pouco chocadas. Afinal, era sábado de manhã. Quem cai de paraquedas numa sessão de cinema tão específica? Pelo visto, eu.
Era “Com Amor e Fúria”. Comprei o ingresso na noite anterior, sem nem me aprofundar na sinopse. Pensei “uau, um filme da Claire Denis em Petrópolis”, e não necessariamente “show, vai ser um prato cheio pra analisar a psique dos personagens”. Mas logo descobri que os homens à frente são professores da faculdade de Medicina, que todos na sala eram psicólogos, psiquiatras ou psicanalistas e tinham insights poderosos sobre o filme.
Alguns achavam a personagem da Juliette Binoche perdida, outros a achavam manipuladora. Um dos personagens era narcisista, outro submisso. Não me atrevi a arriscar um palpite, mas fiquei ouvindo atenta as percepções alheias, me dando conta, aos poucos, que estava abrindo mão do meu momento de ruminar os pensamentos a sós. Mas aqui estava uma oportunidade única: a reflexão coletiva instantânea, plural, sem restrições. Me vi ressignificando cenas que havia acabado de assistir, não porque mudava de opinião, mas porque aprendia a olhar o mesmo acontecimento sob um outro ângulo.
A essa altura, já passavam das 13h em pleno debate. A barriga roncava - se deu mal quem deixou pra tomar café da manhã no cinema e deu de cara com a bombonière fechada (eu) -, mas fui ficando. Em parte porque não queria ser a única a “fazer desfeita” numa situação que não permitia uma saída à francesa (literalmente), mas também em parte porque o papo estava de fato enriquecedor.
Essa foi a primeira vez que entrei numa sala de exibição sozinha e saí acompanhada de pensamentos que alugaram um triplex na minha cabeça e visões diferentes sobre os mesmos assuntos. Em alguns pontos, encontrar eco das minhas opiniões nas críticas dos outros me fez sentir validada; em outros momentos, parecia que cada um presente manipulava a sua própria câmera em cena, com ângulos distintos, lentes e enquadramentos únicos.
É claro, como não? Todo mundo sobe as escadas do cinema carregando ingresso, pipoca, uma bebida e uma bagagem grande de experiências totalmente suas, intransferíveis. Depois de umas 2h lá dentro, no escurinho, sai carregando as embalagens e uma bagagem levemente mais robusta. Dali até encontrar outras pessoas, vai reprisando aquelas cenas, refletindo sobre o que acabou de assistir, no seu ritmo. É uma forma diferente de fazer sentido das coisas, antes de entrar no turbilhão das opiniões alheias, de resumir o filme pra alguém, de escrever uma resenha, de dar uma nota no Letterboxd.
Entendo que o cinema é uma experiência coletiva. É bom demais rir junto, se chocar com algum final impactante, torcer para um lado da briga. Já desviou ao mesmo tempo que todo mundo dos objetos jogados na direção da plateia num filme 3D? É daora.
Mas vivenciar uma experiência coletiva individualmente te dá novas ferramentas para olhar pra ela. Sentar num café sozinha é muito bom pra ficar pensando melhor. Fazer o que bem desejar nesse tempo pra você - ou simplesmente não fazer nada. Olhar o dia passar enquanto todo mundo corre lá fora e você senta confortavelmente por 20 minutos no ar condicionado é precioso. Sem debater notícias de política, entretenimento, os planos do fim de semana, a lista do mercado. Paz.
Compartilhar momentos pode tornar tudo mais especial. Entendo a vontade de estar junto depois de tanto tempo de distanciamento. Mas marcar um encontro consigo mesmo é tão revigorante que, a cada vez que faço isso, prometo pra mim mesma fazer novamente em breve. Aí me dou bolo, mando um “vamos marcar” de carioca, até o próximo reencontro comigo mesma se impor. Mas sigo tentando daqui. Porque imagina só se perder logo de si mesma? Não dá.
PS: Não considerar este conselho para shows. Shows sem companhia são um saco.
DICAS DA VEZ
Estou amando escrever a newsletter Spotlight para o Tenho Mais Discos Que Amigos!, onde faço um resumo dos acontecimentos da semana na música, revelo os charts do Spotify e falo dos principais lançamentos. Me acompanha por lá também, vai? :)
Não adianta, sou muito fãzoca do Ryan Adams. Ele recriando Bruce Springsteen fez o algoritmo do Spotify apitar loucamente comigo.
Muito lindo esse texto chegar aqui quando estou tendo um super date (uma viagem) comigo mesma 💗 engraçado que já fui em show sozinha mas no cinema não, vou me encorajar e ter essa experiência. Acho que o date com a gente mesma tb é muito sobre ser mulher sozinha no mundo, e é uma sensação muito boa fazer as coisas no nosso próprio tempo, sem tantas conciliações do sair junto. Obrigada pelo texto!!!