Meu marido me chama de completista. É verdade. Não abandono coisas pelo caminho. Livros meio lidos, filmes inacabados, histórias não concluídas vão contra a minha natureza. Eu resisto, persisto, não desisto.
Talvez por isso o hábito de colecionar me intrigue tanto. Coletar objetos é se entregar de cabeça a uma paixão não correspondida por anos a fio e que dificilmente terá um final feliz. Não tenho estrutura para tanto. Coleções não costumam chegar ao fim, colecionadores sim. Não é raro que eles sejam enterrados com suas memorabílias, com caixas de cartões de baseball, primeiras edições, moedas, selos. Ou que não vivam para colher o louro de seus espólios, rapidamente leiloados por quem fica.
Mas é impressionante como tudo que pode ser colecionado será colecionado. Qualquer objeto ou bem imaterial que possa ser agrupado em uma categoria bem definida torna-se passível de obsessão. Cartas, plantas, frases de pensadores, brindes de jornal, brinquedos do McLanche Feliz, copos superfaturados de cervejas em shows, ingressos de cinema, mini craques, geloucos, tampinhas, bichinhos da Parmalat, ímãs de geladeira, autógrafos. Nem é preciso adicionar a etiqueta “colecionável”, o convite está implícito.
Dizem que colecionar é algo que trazemos do processo evolutivo. Tão logo deixamos o nomadismo de lado, abraçamos o lado acumulador como meio de sobrevivência. Quem tem mais ferramentas tem mais chances de viver, caçar, se defender. E, vamos combinar, ter coisas nunca deixou de ser um diferencial.
A essa altura, acumular já vem de fábrica. Eu não estou imune. Colecionei revistas com os Backstreet Boys na capa, álbuns de figurinha, papel de carta. Tinha uma papelaria perto do conservatório de música onde eu estudava, e era lá que eu comprava os pacotinhos com 5 figurinhas e uma nova chance de conquistar aquele jogo de damas que a imagem da página 11 prometia. Mas a frustração de não conseguir completar todo o álbum era algo que me consumia. Não é que eu não gostava de colecionar, só não tinha fundos pra isso!
Minha última grande paixão foram os tazos da Elma Chips. Eles tinham imagens dos Animaniacs, eram encaixáveis e tinham uma forma muito divertida de jogar “bafo”, o que somava pontos no quesito competitividade. Um dia, abri um pacote de Fandangos de queijo e não veio um tazo - mas sim, um cartãozinho me informando que eu havia ganhado a coleção completa. Bastava enviar meu voucher para a Elma Chips e eles mandariam para a minha casa. Me parecia até mentira, mas algumas semanas depois chegou lá no interior de Minas aquela caixinha, com todos os tazos, um tubo para guardá-los, um tapete e um disco para bater em disputas com os amigos.
Fui a sensação da rua e da escola durante algumas semanas. Depois, perdeu a graça. Eu tinha todos os tazos, o que mais poderia desejar na minha vida de 8 anos? Na-da! A finitude da coleção nem parecia existir na minha cabeça, até que a Elma Chips me confirmou: nenhum pacote de biscoito ultraprocessado teria o mesmo sabor. Virar aquelas figurinhas plásticas já não dava mais barato. Busquei a realização nos cartões de orelhão, nas canetas de gel, nos CDs, mas logo ficou claro que não nasci pra esse jogo. Sou muito suscetível a não saber a hora de parar, aos altos e baixos do prazer da caça.
Esse é um dos motivos que parecem motivar as coleções. Não há uma explicação única para essas obsessões, não importa o que digam sobre os primeiros humanos acumulando bens para sobreviver. A tara está em muitos fatores, da vontade de se definir e criar identidade até a preservação histórica de acervos; do investimento financeiro à socialização nas trocas de figurinhas dos álbuns da Copa. Não há motivo certo ou errado para fazê-lo, apesar de haver um grau de julgamento social. Um marmanjo com cartões de futebol, com cards de Pokémon?
Inclusive, Freud conseguiu ligar a tendência a colecionar com o ânus - claro, como não? Tem alguma coisa a ver com o processo de desfralde, cuja rigidez por parte dos pais pode levar a contrair o esfíncter e na verdade prender as fezes, ao invés de liberá-las. A partir daí, esses sujeitos passariam a tentar se apegar àquilo que conseguem controlar, para garantirem um senso de autonomia e compensar a falta de amor dos pais. Como sempre, daddy (ou mommy) issues estão na base de toda grande questão humana. Mas eu não vou fingir que entendo de psicanálise, mesmo com essa explicação tão didática e impecável de uma teoria freudiana amplamente criticada.
Mas entendo que existe algo muito mais profundo abaixo da camada obsessiva de uma coleção. Em Hacks, isso é mostrado lindamente. A cristaleira de saleiros e pimenteiros da comediante Debra Vance é a única coisa que ela consegue controlar milimetricamente numa vida que depende da aprovação alheia, da risada dos outros, dos contratos com os executivos que já a negaram tanto. A coleção é um termômetro para quem trabalha com ela. Quando a cristaleira amanhece toda rearranjada, é sinal de que as noites andam sendo difíceis.
Também não vou fingir que não existe um lado mais obscuro no hábito de coletar. É bem verdade que muitas vezes ele descamba para o vício ou para o acúmulo nada saudável. Daí a gente coleciona episódios de Acumuladores como um misto de superioridade moral e curiosidade mórbida.
Mas o que me intriga nas coleções é o seu grau de comprometimento. Muitas vezes, é um hobby para a vida toda, um caminho fácil de frustração e desejos não realizados. Exige um nível de dedicação que pode incluir leilões online, presenciais, às cegas; viagens para procurar “tesouros”; vasculhar infinitas feirinhas de antiguidades; assumir o risco de cair em golpes; tirar dinheiro de onde talvez nem tenha pelo prazer de ter algo exclusivo. De colocar a caixa fechada do boneco na prateleira. De colocar aquela primeira edição em uma estante, posicionada no ângulo correto para receber luz, calor e umidade na medida certa. De colocar o quadro não em uma parede bonita da sua casa, mas num cofre de um banco lá longe, satisfeito apenas em saber que ele existe e está em sua posse.
Mas não vou dizer que não compreendo essa sensação de ser imbatível, de encontrar tesouros perdidos, de garantir para si algo um objeto de desejo e cobiça de muitos. Só quem já teve uma coleção completa de tazos sabe.
💭 Imagina mais:
🎙️ Estou muito feliz em contar pra vocês que meu amigo André Felipe de Medeiros, da ótima newsletter
, me convidou para participar de alguns episódios do podcast (o que deu origem à cartinha). Até gravou um papo comigo, pra depois lançarmos nossa conversa sobre Castelo Rá-Tim-Bum. Ela abre o caminho para outros episódios onde vamos conversar sobre nossa relação afetiva com itens da cultura pop que nos formou. Já assina o podcast aí pra não perder nenhum!Obrigada por ler e até a próxima! ✨
eu não tenho a menor disposição para colecionar nada. acho que nunca terminei um álbum de figurinhas, porque me cansava deles no meio do processo e desistia de conseguir as que faltavam. tazos e bichinhos do kinder ovo eu tinha porque comia bastante deles, mas nunca me preocupei em trocar eventuais peças repetidas. para não dizer que não colecionei nada, houve uma febre das canetas stabilo quando eu estava na escola e aí comprei um monte delas para ter o caderno mais colorido. usava uma cor para cada coisa. depois, a moda passou. e, curiosamente, hoje, só uso caneta preta. 😂😂😂
Parabéns pelos belíssimos textos !!!
Ps - eu gostaria de contratar sua assessoria de imprensa ( 61 99181 2868 )