A casa que mora em nós
Não importa qual, não é tudo igual. Mas todas dão em algum lugar.
1.
Venho pensando na casa como o ponto de referência de uma vida toda, daquelas que a gente usa para complementar o endereço. O lar que tínhamos ao nascer, ao mudar de escola, ao arrumar o primeiro emprego.
A morada, o lugar para onde se retorna depois que tudo é dito e feito, é sempre o ponto de partida e chegada. De certa forma, esses lugares viram depósitos de memórias, uma grande caixa onde a gente setoriza tudo que nos aconteceu enquanto morávamos ali. E, quando chega a hora de ir embora, juntamos nossa coleção de lembranças e partimos para criar novas em outro CEP.
2.
Peter Lund vivia em Copenhague. Outro mundo, outra época. Ainda assim, nossos caminhos se cruzaram.
Pense em paisagens nórdicas.
Pense em barcos num pequeno porto, rodeado de casas coloridas com ripas de madeira.
Pense no cheiro de peixe e sal.
Pense em um IDH que é, de fato, humano e digno.
Lund vinha de lá e foi aportar logo no Rio de Janeiro, posteriormente chegando às Minas Gerais.
Pense em montanhas a perder de vista, com vegetação rasteira que serve de alimento para o gado preguiçoso no pasto.
Pense em casinhas com varandas de fora a fora, com chaminés a todo vapor nos fundos.
Pense no cheiro de torresmo, bolo, doce de compota.
Lund buscava tesouros arqueológicos e foi parar na Gruta do Maquiné, uma estrutura que se destaca em meio aos montes de Cordisburgo, uma cidade pequena, charmosa, com aquela cara de interior mineiro - tirando o fato de que existe uma casa enorme no formato de um elefante no meio da cidade. Mas me desvio do assunto.
3.
Sou, também, de uma cidade mineira sem grandes atrativos. De lá, não saiu nenhum Guimarães Rosa, como é o caso de Cordisburgo. O máximo que aconteceu em Leopoldina é que foi o lugar onde Augusto dos Anjos morreu. Não é um grande feito, a meu ver, com todo respeito ao poeta macabro.
De certa forma, minhas memórias estão também espalhadas por todas aquelas ruas. Outras montanhas, mesmo ar.
Me lembro da sensação de segurança e proteção por viver em uma casa cheia. Morávamos em um beco, a última casa em uma rua sem saída - como acontece com os becos. Minhas primeiras brincadeiras e explorações foram ali, numa ruazinha onde não passavam carros e era possível só… brincar.
Logo, nos transferimos para a casa onde tudo iria mudar. A inocência perdida, a sensação de querer mais, de claustrofobia pelos montes de pedra que cercavam a minha existência. Levei muitos anos, mas várias casas depois, saí de perto de quem me machucava e me distanciei daquela falta de perspectiva.
Não dá pra dizer que Peter Lund e eu partimos do mesmo desejo. O cara tinha ambições de mudar a ciência, estava sabendo dos potenciais geológicos e paleontológicos do Brasil. Eu só queria sair de casa mesmo. Mas, de certa forma, fomos descansar nosso burro nas mesmas paragens.
4.
Peter Lund foi parar em Lagoa Santa, atraído pela recém-descoberta Gruta do Maquiné - hoje, localizada dentro de um parque estadual que leva seu nome. Lund também se faz presente em vários outros marcos da capital do estado até a região das grutas, sacou dos naming rights antes de ser modinha. Mas em 1825, quando foi encontrada aquela estrutura geológica impressionante, não dava para imaginar que dali sairiam fósseis que explicariam a pré-história brasileira e também das Américas. Eram tesouros ainda inéditos para aquelas Minas onde só brotava ouro, prontamente carregados para além-mar. Aquele era um tipo de riqueza mais difícil de surrupiar.
O homem coletou cerca de 12 mil fósseis na região. Morou e morreu em Minas. Foram 45 anos comendo tropeiro e tomando cachaça, imagina-se. 45 anos de “come só mais um bolinho, tá muito magrinho”. Quase meio século de “é logo ali”, dobra à esquerda, segue reto toda vida e você vai cair em um tesouro fossilizado sem precedentes. Mais um dia nas Geraes.
Visitei a casa de Lund lá pelos idos de 2010 ou 2011. Não a casa dele, de fato, onde guardava os estudos, as cuecas, os talheres, os ternos. A casa que escolheu para si, a Maquiné. O impacto inicial é a experiência de entrar em um templo do passado. É diferente da sensação de visitar um museu, de pisar em ruínas romanas, egípcias, gregas - imagino eu, sem nunca ter ido a qualquer desses lugares. É um tipo de história diferente, que antecede até mesmo a existência de pessoas como eu e você.
A gente vai à Europa, pede uma cerveja num boteco que existe no mesmo lugar há 1.215 anos e acha o máximo (e é). São coisas que atualizam nossa definição de passado, vindos de um lugar que, juram, existe há mais ou menos 500 anos. Mas nenhum passado é mais passado que pinturas rupestres na parede. É o que faz as pupilas saltarem aos olhos, como quem diz “opa, esse museu é diferente”.
A meu ver, a Gruta do Maquiné é mais impactante que sua irmã mais próxima, a do Rei do Mato, em Sete Lagoas. Porque, embora ambas tenham um visual marcante, com seus estalagmites monumentais iluminados e, a essa altura, instagramáveis, apenas no Maquiné encontra-se a cama de Peter Lund.
E por cama, leia-se uma pedra lisa.
Pense numa superfície dura como pedra, pois é, de fato, pedra.
Pense nos muitos metros para dentro da terra.
Pense nos barulhos amplificados por eco.
Pense nas alergias respiratórias.
Pense na falta de iluminação e na sensação de claustrofobia.
Não há isenção de IPTU que justifique passar três anos nesse lugar.
5.
Lund era tido como doido naquela região. O gringo que entra na caverna por longos períodos de tempo por vontade própria. Que monta acampamento lá dentro e fica com seus pinceizinhos procurando ossadas. Quer dizer, só pode ser tantã das ideias. Chama o dotô.
Eu, de certa forma, entendo a alienação. De se sentir um pouco alheio a tudo, de não entender como se encaixar com os demais. Deve ser boa a sensação de pertencimento, de achar o seu lugar no mundo.
A cama de Lund é um platô, como são todas as camas tradicionais, ouso dizer. Essa não era tradicional. Mas a gruta tem mais que isso.
Pense em pedras esculpidas pela água ao longo de milênios.
Pense em piscinas naturais que refletem as pedras que pingam do teto.
Pedras que pingam! Essa tendência de decoração você não encontra no Pinterest.
Ainda assim, a cama foi o que mais me marcou. Peter Lund queria muito estar ali, mudou-se de mala e cuia pra lá. Não o culpo, Minas Gerais faz isso com as pessoas, apesar de que arriscaria chutar um ou 100 destinos mais palatáveis que uma gruta.
Não importa. O dinamarquês passou mais da metade dos seus 80 anos de vida em Lagoa Santa, principalmente, o que fez daquele lugar, seu povo e sua língua seu maior referencial de vida.
Lund se tornou o cara que morava logo ali, assim como eu moro logo aqui, embora já a muitos quilômetros das Minas Gerais.
Também fui construir raízes em outras paragens, sem abrir mão daquelas que me trouxeram até aqui. Dá um trabalhão, mas com o tempo elas se tornam sólidas e potentes. Pensei muito nisso enquanto arrumava caixas para a última mudança, mês passado. Mais de um terço da minha vida vivi em Petrópolis, uma cidade que, diferente da primeira, eu pude escolher pra mim.
Aqui, eu e Lund nos distanciamos. Faço o caminho oposto. Desci a serra, vim para o Rio de Janeiro, em direção ao sol. Que seja aconchegante e cheio de vida, porque há muita a ser vivida - antes que nos tornemos, também, fósseis.
💭 Imagina mais:
Assim como o subtítulo dessa newsletter, as portas inspiraram esse ótimo texto da
. É sobre ciclos, é sobre Marisa Monte, é sobre muito.Me vi muito no texto da
sobre encontrar a própria voz sendo jornalista, tão acostumada a escrever as histórias dos outros.Rolou uma nostalgia danada nessa edição da
sobre músicas que nos levam de volta a um tempo, a uma fase da vida.Conheci a
na e adorei o jeito que ela escreveu essa mania que a gente tem de desejar paz - no aniversário, no ano novo, nas datas comemorativas -, e como isso muda de significado com o passar do tempo.Coisa linda esse texto da
sobre os sinais do tempo no nosso rosto, sobre se apropriar da idade que tem!A
escreveu isso aqui logo após assistir “Questão de Tempo”, aquele filme que te desidrata de tanto chorar. E fez a única reflexão possível, mas ainda assim muito potente.Deu pra notar que eu coloquei as leituras de newsletters em dia, né? 😁
Obrigada por ler e até a próxima!
Amei tudo nesse texto. A história desse dinamarquês doido, a forma como você conectou a jornada dele com a sua, tendo apenas Minas em comum. Ficou lindo.
E adorei que você gostou do meu texto de fim de ano, obrigada pela menção <3
fiquei com mais vontade ainda de conhecer Minas Gerais!