Fico imaginando o que aconteceu com aquela versão que sonhamos para nós mesmos, ainda na infância, quando pensávamos em como ia ser a vida de adulto. A gente só queria a liberdade de comer a sobremesa antes do almoço, mas nos demos o luxo de sonhar, também, em ser jogadores de futebol, escritores famosos, atrizes de Hollywood, primeiras bailarinas do Bolshoi, artistas da música.
É bem verdade, alguns de nós conseguiram. Alguns mais seletos ainda chegaram ao topo do jogo - lançaram livro na Bienal, foram indicados ao Oscar, ganharam a Copa do Mundo, num misto de muito trabalho e muita sorte também.
Mas as nossas versões superfaturadas ficaram num limbo. A partir do momento em que as conjuramos em nossas pequenas mentes borbulhantes, elas passaram a existir. Porém, como num eterno Aranhaverso sem superpoderes, ficam flutuando por aí, jamais realizadas. Em algum momento, a gente bateu a poeira, deu a volta por cima e marcou “contabilidade” no vestibular, sem nunca mais olhar pra trás.
Jogar futebol toda terça-feira não conta como viver o sonho, sinto muito informar. Mas a dura realidade dos fatos é que há um número bem limitado de indicados ao Oscar todo ano - não importa o quanto a Barbie mereça, muito mais gente fica de fora do que de dentro. São poucos os manuscritos que sequer chegam às mãos de editores com poder de decisão, imagine então os que são publicados. Com a realização da Copinha, veio à tona a estatística de que apenas 3% dos jogadores juvenis que chegam à maior vitrine do futebol jovem do país continuam na carreira com algum destaque.
Esse talvez seja o primeiro luto da vida de muita gente - tudo que poderíamos ter sido, caso não morássemos tão longe de onde as coisas acontecem, ou tivéssemos dinheiro para aquele curso, ou tivéssemos investido mais horas de treinamento. Mas é um luto tão precoce, que nem notamos. A ficha talvez só caia no segundo, aquele que se vive depois de um certo tempo de diploma na mão e registro profissional embaixo do braço. O momento do “então era só isso?”, a cena em que se constata de que crescer era, de fato, uma cilada.
Descobri recentemente que a minha profissão é a mais citada na pesquisa de arrependimento do ZipRecruiter, um site gringo de vagas e contratações. Os jornalistas foram os que mais disseram que escolheriam outra formação, caso pudessem. Lá fora, talvez seja mais difícil - a galera só vai terminar de pagar o empréstimo da faculdade depois de uns 20 anos. Mas aqui, vejo muitos colegas largarem CLT PJ pra viver de bolo, de yoga, de DJ. Acreditei na pesquisa porque vivo essa fantasia há um tempo, mas aí eu lembro que gosto das minhas funções, do título, do que a profissão ainda significa. Então vou ficando, mas sem nunca descartar de fato a minha própria versão boleira e vendedora de pipoca na praça - só pra citar coisas que eu amaria fazer de verdade e que, aposto, têm menos stress envolvido.
Porque existe, também, uma outra dimensão. A versão de nós mesmos que sequer chegou onde chegamos. Que deu ainda mais azar, que não teve nenhuma motivação, zero oportunidades, só derrota. Essas pessoas existem, mas de alguma forma, eu e você estamos aqui, embaixo de um teto, com internet e água encanada, vivendo para lutar mais um dia. Não sou do tipo que “se dá por satisfeita”, acredito na ambição e na disciplina como fatores determinantes. Mas não sou boba de deixar de reconhecer que a Nathália desse universo tem lá suas vantagens, mesmo que não tenha sido autora convidada na Flip - ainda.
Longe de mim bater palma pra bilionário, mas por algum motivo, dei play na entrevista do Mark Cuban no podcast do Trevor Noah - e acho que o motivo se chama Trevor Noah. O homem consegue humanizar até o mais sem sal dos entrevistados, e nesse caso não foi diferente. Sempre peguei no pé do Cuban porque não gostei de como ele lidou com um caso de violência contra a mulher por parte de um dos jogadores de seu time de basquete - infelizmente, me importo com NBA e esse tipo de coisa. Daí que me surpreendeu essa fala bastante sensata de ninguém menos que um Shark do Shark Tank: se fosse começar tudo de novo, dificilmente Mark Cuban seria bilionário. Ele reconhece que trabalhou muito, mas esteve nos lugares certos, nas horas certas e com as pessoas certas. Possivelmente teria feito seus muitos milhões, mas esse tipo de fortuna não cai duas vezes no mesmo lugar.
Ou seja, mesmo quem de fato chegou lá reconhece que tem muito dedo do acaso nisso aí. Não é pra desvalorizar quem se esforça, é muito mais um reconhecimento das múltiplas possibilidades que existem lá fora. A essa altura do campeonato, é difícil imaginar recalcular a rota ou mesmo voltar no tempo e pegar um trajeto completamente diferente. Mas é também reconfortante pensar que nossas versões imaginadas podem não ser as nossas melhores ou mesmo as mais realistas. Porém continuam existindo, toda vez que você faz o shampoo de microfone ou o condicionador de Grammy na hora de aceitar a sua estatueta. Às vezes, imaginar já é o suficiente.
Tem uma anedota que eu acho muito representativa dessa noção de que a vida dá voltas. O comediante Louis CK foi ao programa de Stephen Merchant e, sei lá porque cargas d’água, saiu no assunto Inside The Actors Studio - um talk show de entrevistas gravado com grandes nomes do cinema, no auditório da tradicional escola de atuação que leva seu nome.
Então Louie comentou que os estudantes na plateia perguntavam a atores como Sean Penn como fazer o que eles faziam, como chegar ao seu nível, e ele só queria dizer “aff você nunca vai ser famoso, senta aí”. Corta literalmente para o episódio de Sean Penn, gravado em 1999 no Actors Studio, em que um certo Bradley Cooper faz uma pergunta ao ator entrevistado. Alguns anos depois de tudo isso, Louis CK e Bradley Cooper contracenaram em Trapaça, provando que às vezes alguns atores conseguem, sim, chegar lá - inclusive serem indicados como diretores no Oscar, só para ensinar uma lição pra Barbie. E outros conseguem inclusive atingir o sucesso e perder toda a sua reputação, como é o caso do próprio Louie.
O mundo dá, mesmo, voltas. Então vou honrar aqui a Nathália que passava horas nos sábados à tarde, no Multishow, vendo Inside The Actors Studio, e responder o questionário que o apresentador James Lipton fazia a todo convidado - isso partindo do pressuposto que eu voltei no tempo, dei um jeito de participar daqueles testes para as Chiquititas e me tornei a grande atriz da minha geração, tendo feito o crossover para a mídia americana e estrelado em múltiplos filmes respeitados. Ah, que o James Lipton também não está morto, o que deixaria tudo bem mais macabro do que necessário. Pois bem.
1. Qual é a sua palavra favorita? Efêmero.
2. Qual é a sua palavra menos favorita? Burocracia.
3. O que te excita? Novidade.
4. O que te faz broxar? Preconceito.
5. Qual o seu xingamento favorito? Caceta.
6. Qual som ou barulho você ama? Do café pingando na garrafa.
7. Qual som ou barulho você odeia? Motorzinho de dentista.
8. Que profissão diferente da sua gostaria de tentar? Escritora de livros de viagens.
9. Qual profissão não gostaria de ter? Qualquer uma envolvendo o fundo do mar.
10. Se o céu existir, o que você gostaria de ouvir Deus dizer quando você entrasse pelos portões? Seus familiares saudosos estão logo ali te esperando!
Agora vejam bem: tanto assisti esse programa que me apaixonei por entrevistas longas. Sabia que não tinha tino para atriz, mas cá estou eu do outro lado do balcão. A vida tem mesmo dessas coisas - ainda bem.
Deixo aqui o convite pra vocês também entregarem idade junto comigo e colocarem nos comentários quais os melhores episódios do Actors Studio (óbvio que é o do Al Pacino) e as suas próprias respostas para o questionário.
Obrigada por ler até aqui e até a próxima ✨
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Impossível ler esse texto sem percorrer uma viagem interna, lembrando daqueles sonhos que encostamos para sobreviver e claro, reparando que ainda assim, a sorte não nos desamparou. Obrigado por esse abraço via caixa de entrada, Nathalia.
ensaiei muitos discursos do oscar com frascos de xampu, mas hollywood era muito distante. eu deveria ter mirado os melhores do ano do domingão. hahaha