A cultura pop tem suas obsessões. Gênios criativos, prodígios, artistas que transformam o mundo com sua visão singular. Quase sempre, essas histórias seguem um roteiro familiar: uma mente brilhante, um talento inquestionável, uma jornada solitária de criação.
Mas se você muda um pouco o ângulo da câmera, logo percebe que, muitas vezes, essa genialidade nunca esteve sozinha. Há sempre alguém por perto, um nome que aparece menos nos créditos, mas que fez toda a diferença na trajetória do protagonista.
O interessante é imaginar como essas histórias poderiam ser diferentes se fossem contadas de outro jeito. Se, em vez de notas de rodapé, essas presenças fossem reconhecidas como parte essencial do enredo. O que mudaria se olhássemos para essas narrativas sem o filtro automático que destaca um nome e coloca o outro em segundo plano?1
A mulher que fez uma floresta brotar
Sebastião Salgado passou décadas fotografando o impacto da destruição. Guerras, fome, deslocamentos forçados, garimpos a céu aberto, florestas devastadas. Mas, quando voltou para casa, encontrou um cenário tão desolador quanto os que havia registrado ao redor do mundo: a fazenda da família, no Vale do Rio Doce, havia se tornado um pedaço de terra árida, sem vegetação.
A história, do jeito que costumamos contar, segue um caminho previsível. Sebastião Salgado, o fotógrafo que expôs a degradação do planeta, decide restaurar um pedaço dele. Mas essa não é a história completa.
O que aconteceu, na verdade, foi que Lélia Wanick Salgado olhou para aquele pedaço de terra e viu a possibilidade de transformá-lo. Ela fundou o Instituto Terra, coordenou o replantio de milhões de árvores, articulou recursos e especialistas, planejou cada etapa da recuperação. Não foi um gesto simbólico, nem um detalhe paralelo à carreira do marido. Foi um projeto gigantesco, um trabalho de décadas.
Quando entrevistei Fran Healy, do Travis, falávamos sobre o poder da edição. Fran, que se descreve como um “compositor preguiçoso”, defende que talvez a arte esteja na lapidação, em treinar o olhar para saber o que fica e o que é descartável. Eu tive a ousadia de fazer um paralelo com o meu próprio trabalho como jornalista, de receber palavras alheias e dar sentido a elas.
Mas Healy entendeu exatamente o que eu queria dizer. Ele mencionou “O Sal da Terra”, documentário sobre Sebastião dirigido por Wim Wenders e Juliano Salgado, e disse algo que me fez pensar: “Sebastião Salgado é um fotógrafo brilhante, mas sem sua esposa, ele não seria nada.”
Não é um exagero. Ela estava lá na compra da primeira câmera, criando o filho do casal enquanto o marido registrava calamidades mundo afora e até selecionando as imagens que hoje vemos nas exposições e nos livros. O nome na capa, porém, é o único possível. Afinal, só há espaço para um dedo no obturador da câmera.
Se a história fosse contada de outro jeito, talvez a narrativa não fosse sobre um fotógrafo que decidiu reflorestar um pedaço de terra, mas sobre uma mulher que fez brotar uma floresta enquanto o mundo seguia em chamas.
O nome dele na capa, o trabalho dela nas entrelinhas
E se soubéssemos, desde o colégio, que Mileva Marić pode ter colaborado com Albert Einstein na Teoria da Relatividade? Se, ao falar dos irmãos Wright, mencionássemos que Katherine Wright garantiu os investimentos e a divulgação que tornaram seu feito possível?
Se Vera Nabokov fosse lembrada não só como a esposa de um escritor, mas como a editora e crítica sem a qual Vladimir Nabokov talvez nunca tivesse ganhado o status que tem hoje? Se Sophia Tolstaya não fosse apenas a mulher que transcreveu à mão “Guerra e Paz”, mas alguém sem quem essa obra talvez nunca tivesse sido finalizada?
Não se trata apenas de corrigir omissões, mas de imaginar como a própria ideia de genialidade poderia ser diferente se tivéssemos sempre contado essas histórias de outro jeito.
Um novo olhar
Jon Batiste foi o artista com mais indicações ao Grammy em 2021. Ganhou um Oscar pela trilha de “Soul”, lançou álbuns elogiados, lotou o Carnegie Hall. Durante esse tempo todo, sua esposa, Suleika Jaouad, enfrentava um tratamento agressivo contra a leucemia, com quimioterapia e um transplante de medula.
O documentário “American Symphony” (Netflix) acompanha esse período e, em vez de narrar a ascensão de um artista, revela algo que a cobertura midiática não destacou tanto: a trajetória de Jon e Suleika sempre foi uma troca. Eles se conheceram quando eram adolescentes, passaram anos compartilhando ideias, influenciando o trabalho um do outro.
Suleika não é apenas “a esposa doente”. Ela também é musicista (seu instrumento é o contrabaixo), autora de um best-seller, uma escritora que investiga a relação entre arte e saúde, alguém cujo olhar moldou tanto sua própria obra quanto a do marido. Mas quando Jon atingiu o auge do reconhecimento, a mídia fez o que sempre faz: contou a história dele e reduziu a dela a uma nota sentimental sobre amor e superação.
Quando entrevistei Jon Batiste, ele falou sobre Suleika com um carinho evidente. Chamou-a de “o amor da minha vida”, mas também deixou claro que essa relação não é só afeto. É parceria, troca criativa, influência mútua.
Se a história fosse contada de outra maneira, talvez fosse sobre um casal que passou anos construindo algo juntos. Uma escritora que lidava com sua doença enquanto o marido traduzia esse processo e tantos outros em música. Um projeto artístico e humano que existia antes da fama e que continuaria existindo depois.
Fiquei feliz em saber que em abril, ambos irão embarcar em uma mini turnê juntos pelos Estados Unidos, promovendo noites sobre criatividade, música e contação de histórias. Assim, em cima de um palco, impossível não notar a relação que suas obras compartilham.
O que acontece quando mudamos o foco da câmera?
Não há dúvida de que os nomes que conhecemos são, de fato, talentos excepcionais. Mas é curioso pensar em como essas histórias poderiam ser recontadas se olhássemos para elas de outra perspectiva.
Se o protagonismo fosse dividido, se as contribuições fossem vistas como complementares em vez de auxiliares, será que teríamos uma noção diferente do que significa ser genial?
Talvez já estejamos caminhando nessa direção. Lélia Wanick Salgado tem sido mais reconhecida por seu impacto ambiental (além de ter virado uma indicada ao Oscar, como produtora do documentário). Suleika Jaouad encontrou leitores que acompanham sua obra por ela mesma (inclusive aqui no Substack). O próprio “American Symphony” parece uma tentativa de dar forma a essa mudança de perspectiva.
Ainda assim, há sempre um intervalo entre o momento em que uma história acontece e o momento em que ela é recontada sob um ângulo diferente.
A questão é: até quando esse intervalo precisa ser tão longo?
(Feliz Mês das Mulheres. O que ainda está à margem pode ser o centro.)
Pois é, como é louco que muitas mulheres ainda estejam à sombra e não tenham o devido reconhecimento.
Adorei seu texto, trazendo elas para o centro da narrativa e tirando-as das notas de rodapé. <3
Que texto incrível! Só você mesmo pra pinçar essas histórias e dar esse recorte, amei muito.