Não sei porquê, mas amo ler cartas, diários, dedicatórias de livros em sebos, listinhas de tarefas rabiscadas por outros. Não precisa ser de gente famosa, só precisa ser interessante. Sinto que conheço melhor alguém ao me aproximar de sua caligrafia, entender se é uma pessoa mais conservadora ou mais libertária. Se se dedica a pingar os Is e cortar os Ts ou se não perde tempo com detalhes.
Quando era adolescente, fiz um caderno de respostas. Os jovens hoje em dia ainda usam os cadernos de respostas? Espero que sim. Era um experimento social que dava para você saber, ao mesmo tempo, o time e a cor favorita de todos da sua sala na escola. Mas também sacar, por referências cruzadas, quem gostava de quem, quem dava mais trabalho pro professor corrigir a prova.
Não sou especialista, portanto não consigo usar a caligrafia para determinar se uma pessoa tem potencial assassino ou se falsificou uma assinatura. Também não quero fazer juízo de valor, quem tem letra “bonita” - o que quer que seja que isso quer dizer. Quero é dar uma bisbilhotada em um elemento cada vez mais íntimo: a letra, o escrito à mão.
Talvez sejamos a geração da transição - nós, a turma dos 30. Tínhamos a necessidade de expressar tudo com papel e caneta, agora um emoji faz isso por nós, com uma carga extra de duplo sentido que um coraçãozinho no I não seria capaz de entregar.
Por isso, quando saí do jornalismo de apuração - aquele que você tem que ir pra rua com bloco, caneta, gravador, câmera e entrevistar pessoas sobre o buraco na estrada, o banheiro público da praça -, me voltei para meus cadernos. Criei bullet journal, commonplace books, cadernos para resenhar livros, para planejar refeições. Com pauta, sem pauta, com pontos, quadriculados. Estudava a gramatura, comprava canetas bonitas para povoar as páginas. Os cadernos vinham de Berlim ou do Rio, as canetas, do Japão ou da papelaria do bairro. Adesivos, marcadores, post-its coloriam aquele papel off-white. As canetas sangravam para o outro lado da página; as aquarelas as enrugavam. Não eram apropriadas para o tanto que se exigia delas.
Por isso que, vira e mexe, retorno ao papel. Ele guarda uma solenidade que o teclado jamais poderá proporcionar. E escrever com caneta requer treino constante, afinal, a gente já tá a ponto de se cansar de preencher um formulário por falta de costume.
Ler os escritos de pessoas famosas ou historicamente relevantes tem um sabor extra. Amo me embrenhar pelos posts do Shaun Usher na Letters of Note e no Diaries of Note; e mergulhar fundo nos diários e cadernos de estudos que a Jillian Hess publica na Noted. São newsletters e sites dedicados a garimpar as palavras colocadas no papel sem o peso da publicação, de criar rascunhos apenas pelo prazer de projetar; de escrever palavras despretensiosas somente para reclamar da vida, da guerra, do marido. Não importa se você é Ghandi ou uma criança anônima, o que importa são as histórias por trás daqueles trechos ou mesmo correspondências completas, entradas de diário, cadernos de estudo, listas de supermercado.
Dia desses, ouvi o podcast da Julia Louis-Dreyfus com a Isabel Allende, em que a autora chilena relata sem reservas a relação com a mãe. Por conta do segundo casamento, com um diplomata, ela acompanhava o marido a trabalho e vivia muito tempo longe dos filhos. Dessa circunstância, surgiu o hábito de escreverem uma para a outra quase diariamente, mantendo essa correspondência por décadas. Resultado: Isabel, hoje com 81 anos, tem uma garagem cheia de cartas, catalogadas por ano. São 24 mil delas, longas conversas entre mãe e filha com tamanha candura que, segundo a escritora best-seller, tornam-se impublicáveis. Sua mãe, Francisca, falava abertamente sobre qualquer assunto e isso por si só tornaria as missivas muito escancaradas para o grande público. Apenas Isabel tem o prazer de mergulhar naqueles envelopes, já que servem de uma espécie de diário. “Quando quero saber o que aconteceu em algum momento, é só procurar a caixa daquele ano e vou encontrar”, ela explica mais ou menos assim para Julia.
Não seria exagero dizer que há uma vida inteira naquelas cartas. Assim como existe um recorte valioso em cada correspondência que vem a público (até aquelas, uhm, esquecidas no lixo do e-mail). Inclusive nas que são escritas e não enviadas a seus destinatários finais, ficando retidas em blocos de rascunho. Katy Perry tem uma música inteira sobre isso - me deixa, eu adoro “Save as Draft”, o “Witness”, o “Smile” e tudo mais. Kátia nunca errou.
A primeira carta que recebi foi antes de nascer. Minha mãe guardou suas correspondências com meu pai - um affair que morava a 1.046,2 km de distância. Não era pra durar, claro. Mas ele foi informado, via Correio, da gravidez não planejada e, embora não tenha levantado um dedo para cuidar da criança e da mãe, escreveu para seu feto desconhecido. Há algo de poético nas cartas, não nego. E agridoce, claro. Não que seja uma história única, mas é única na minha vida - foi o primeiro e último caso em que eu recebi uma missiva do limbo, uma carta de alguém que não está morto, mas que também não existe. Em tempos de Dia dos Pais, entre muitas declarações de amor, as ausências são também denunciadas, como devem ser.
Mas, no auge da minha carência paterna, eu me apegava àqueles pedaços de papel já amarelados. A caligrafia, impecável. Os votos de uma vida incrível, de descobertas, se descortinavam ali. Eram sinceros, dá pra notar. São uma espécie de poço de desejos, um prenúncio de uma existência que muitas vezes ganhava força motriz justamente por conta daquela falta; mas principalmente, apesar dela.
Com o tempo, fui enviando meu endereço para clubes de trocas de cartas em revistas. Foi assim que eu encontrei pessoas para conversar sobre o que gostava. Eram, também, fãs de Backstreet Boys, Spice Girls, Hanson, Harry Potter. Às vezes, não havia nada em comum a não ser o desejo de se comunicar. Me lembro de um colega por correspondência que morava no Piauí e gostava de enviar fichas sobre países que ele desejava conhecer um dia. Copiava à mão, de algum Atlas escolar, dados sobre território, população, língua, capital, cultura e costumes de lugares exóticos. Não era nunca um Estados Unidos, era sempre um Liechtenstein. Bons tempos.
Não guardei as cartas. Não preservei os escritos, como fazem tantos. Escreviam em papel carbono, reescreviam as páginas com um esforço de arquivistas. Não retorno aos meus diários e páginas matinais também. Eles cumprem um papel de repositório de pensamentos que eu não desejo, necessariamente, revisitar. São um receptáculo de listas de afazeres, preocupações, dúvidas existenciais já passadas, porque a cada dia os desafios se renovam.
Hoje, não escrevo mais cartas. Não tenho mais uma gaveta com papéis, envelopes, adesivos, selos. Cheguei a escrever cartas para mim mesma e até para um professor que me bloqueou criativamente por anos - mesmo sem enviar. Mas venho aqui a cada duas semanas (às vezes mais, às vezes menos), escrever um tipo de carta - é uma newsletter, afinal - em busca de destinatários incertos. Todas chegarão ao leitor, nem todas serão abertas, e tudo bem. Gosto de pensar que cada uma dessas cartinhas encontra os leitores que precisa encontrar. O fato de que tem um monte de gente nova aqui só me deixa grata de ter alguém para ler (e que o Substack não cobra pelos selos). Essas cartas são escritas com a intenção de serem lidas.
Mas há um prazer de voyeur em espiar por entre as frestas das linhas dos outros. De banais a geniais, elas mostram traços únicos de poetas, estadistas, cientistas. Dia desses, descobri que o que inspirou, inicialmente, o interesse de Nikola Tesla sobre a eletricidade foi o seu gato. Li uma longa troca de farpas entre John Cleese e o editor de um jornal inglês por conta de uma declaração inverídica. E todos os poréns levantados por Irvine Welsh ao roteirista de Trainspotting - o responsável por adaptar seu livro para o filme icônico de Danny Boyle. E a carta que Keith Richards enviou para a tia contando sobre ter conhecido um cara interessante chamado Mick? Tem ainda a entrada de diário do gerente de turnê e assistente dos Beatles contando como foi o dia em que os quatro atravessaram a Abbey Road para a foto de capa do disco de mesmo nome. Termina com um “it was very nice” inocente, de quem talvez não soubesse estar presenciando a história sendo feita.
As cartas e diários têm isso de serem recortes de um tempo em que Virginia Woolf não estava sendo a escritora fodona que era. Em que se vê um Isaac Newton ainda perdido, sem saber o que estava fazendo conduzindo experimentos em si mesmo na universidade. De ver um John Lennon bem-humorado nos jornaizinhos satíricos que criava na infância. São cheios de pérolas, mas também de uma existência em que pouco acontecia, a não ser alguém notável em pleno desenvolvimento. Lento, gradual, mas totalmente cotidiano.
Faz pensar que, muito embora essa gente tenha deixado sua marca, começaram como todos nós - só tentando viver um dia de cada vez. E, de vez em quando, tendo que mandar carta enfezados pra um editor, um político, a própria mãe. Não diminui nem um pouco a grandeza dos seus feitos, só os humaniza - o que nunca é demais.
Daqui, sigo tentando superar o fato de que a minha cartinha de Hogwarts nunca chegou.
Pra quem também quer bisbilhotar nos escritos secretos alheios, deixo algumas dicas:
Eu te dedico: Tumblr que recebe dedicatórias variadas em livros. Achei, nos arquivos de 2013, um post com contribuição minha: foto de uma coletânea de crônicas do Vinicius de Moraes que o
me deu naquela época.Letters of Note: Origem do livro Cartas Extraordinárias (que eu até hoje espero abaixar o preço kkkcrying), tem uma newsletter aqui no Substack e até eventos protagonizados por atores famosos lendo cartas icônicas. Acho chique.
Diaries of Note: Site feito também por Shaun Usher (como o acima) e traz entradas de diário curiosas.
Unsent Letters: Um reddit só com desabafos de gente como a gente que quer jogar no mundo suas agruras, sem necessariamente enviá-las aos destinatários.
Letters Anonymous: Um site onde é possível enviar e ler cartas de anônimos para anônimos.
Letters to crushes: Bilhetinhos de amor na era das internets. Fofo!
Por algum motivo, escrevi esse texto inteiro ouvindo toda a discografia do Mazzy Star. Redigindo durante os dois primeiros, revisando e adicionando os links com os dois últimos. Se tem algo que será atemporal pra mim é música de guitarra triste protagonizada por mulheres. Escrever sobre Katy Perry ouvindo Hope Sandoval é muito eu, sabe? Essa aqui é linda:
Jorge Drexler (que homem!) escreve lindamente sobre escrever em seu álbum mais recente. Essa música é de uma boniteza poética!
O que deixo por escrito / não é esculpido em granito
Eu apenas deixo de lado as premonições ao vento.
Eu peço o que preciso: tinta e tempo, tinta e tempo / tinta e tempo, tinta e tempo.
Mas é difícil para mim esperar / e na hora de decantar / lentamente o que eu sinto...
fico impaciente...
Então eu tento novamente: tinta e tempo, tinta e tempo/ tinta e tempo, tinta e tempo.
Eu nunca sei por que ou quando: Eu não comandei aquela voz.
E no final, eu sempre tateio / sem bússola na tempestade, / mas depois do desânimo
cada história / se tiver que pintar, pinta-se: tempo e tinta, tempo e tinta / tempo e tinta, tempo e tinta.
Entrevistas novas publicadas!
Falei com o Jon Batiste sobre o novo álbum que vem por aí nesta sexta-feira (tá lindão). Dá pra ler ou ouvir abaixo:
E com o Bryan Adams sobre a trilha sonora que compôs para o musical de Uma Linda Mulher.
Não sei você, mas quando crescer, eu quero ser como a
. Nessa edição da (olha aí como combina com o tema de hoje), ela fala do que a leva a escrever poesia. Aproveito pra deixar a dica: leia o livro dela antes da fama, depois fica mais caro. , sempre ela, escrevendo lindamente sobre a relação dual que temos com o ser mulher: amar quem somos, odiar o risco que corremos apenas por sermos quem somos. A newsletter da Bárbara é curtinha, mas os links sempre me pegam por um tempão - foi lá que descobri o podcast da Julia Louis-Dreyfus que comento acima.A
tá com inscrição aberta para um curso que eu queria muito fazer, Revelando segredos: blogs, newsletters e o combustível da escrita, mas segue escrevendo como ninguém na . Essa edição é muito potente, sobre sermos as nossas próprias carrascas, odiando nossos corpos desde muito cedo. Cirúrgica.A
fala tão bem sobre a não-linearidade da vida! Ela traça um paralelo bonito entre a gravidez de sua filha e uma entrevista da Clarice Lispector. Em comum, as duas têm a constatação de que ninguém é uma coisa só e há infinidades que a gente não mostra sempre (ainda bem).Ouvi essa entrevista do John Mayer no podcast do Rick Rubin (catei a dica do
) e adorei entender melhoras as motivações e inspirações de um dos artistas que eu mais ouvi na vida.Obrigada por ter lido até aqui! Até a próxima!
Leitura muito boa. Sabe sou dessa mesma geração de Balzac e às vezes me sinto noutro mundo com caneta e papel. Um mundo mais sólido, não vivo, mas com certeza mais denso e no qual os atos não se apagam tão facilmente.
que leitura gostosa. amo as suas cartas, mesmo tendo sido escritas por teclado <3