Quando era mais nova, tinha uma fantasia de sair de casa com nada além da carteira, entrar num ônibus qualquer ali na rua e apenas… ir. Não fazia questão de olhar o letreiro, de perguntar ao motorista se passava por tal rua, cidade, estado. Era uma manifestação óbvia da necessidade que eu tinha de ampliar os horizontes, tendo nascido e crescido em uma cidade pequena (já contei um pouco sobre isso aqui).
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Mas essa imagem me veio em mente dia desses, na terapia. Me remeteu à sensação gostosa do desconhecido - uma iguaria que se presume rara na vida de quem já está na fase de pagar IPVA, declarar imposto de renda, renovar matrícula da cria na escola. Rotina é uma constante, desvios de rota são exceções.
Eis que, no auge do quiet quitting, eu fui lá e pedi demissão, em alto e bom som, da minha própria empresa. Fundei a BUM com o Daniel, meu companheiro, em 2013, num momento de grana curta e sonhos altos. O desejo era de pagar as contas, claro, mas também viajar, casar, a gente não quer só comida, etc. Corta pra 2022, e após pandemia e maternidade, me encontro em frangalhos física, mental e emocionalmente. Entram terapia, psiquiatra, nutricionista, academia, tudo junto, num grande esforço de organizar o caos.
Foi aí que caiu a ficha que eu não ia dar conta, então escolhi. Tenho o privilégio de ter um parceiro que vai segurar a onda na empresa pra me possibilitar explorar o mundo lá fora, colocar o dedinho na piscina da novidade e pensar que Nathália eu quero ser nessa nova fase.
Sei que não sou a única e, de uma forma ou de outra, tá todo mundo dessa geração no mesmo barco.
Um parêntese aqui:
Vem cá, cê viu o relatório que o WeTransfer publicou com profissionais da economia criativa? Vou deixar um resumo aqui, porque é bem sintomático do tanto que estamos abrindo mão em nome de um trabalho ~descolado:
Eles ouviram 6500 criativos (funcionários de agências, criadores de conteúdo, freelancers em escrita, design, etc), 180 países, maioria mulheres abaixo de 35 anos;
Apenas 52% têm emprego em tempo integral; 25% são autônomos; 8% estão em meio período;
55% dizem que buscam projetos alinhados aos seus interesses e princípios, mas só 22% se encontram numa posição de aceitar apenas trabalhos que atendam esses critérios;
78% dizem estar dispostos a fazer concessões e sacrifícios para atingirem seus objetivos, mas 90% acha que os bastidores de seu trabalho são desconhecidos para as outras pessoas. Tanto que, pelo menos 1 a cada 10 pessoas disse já ter ouvido que são totalmente substituíveis em suas funções;
44% se dizem bem sucedidos, e a maioria (56%) não se acha bem sucedida;
A maioria concorda que a felicidade no trabalho é importante, mas ela é encontrada apenas 51% das pessoas brancas, 37% das asiáticas e 35% das negras;
Entre os boomers, 73% acham seu salário justo; na GenZ, a porcentagem cai pra 57;
Um terço dos autônomos diz que não consegue uma entrada financeira justa porque os clientes atrasam muito os pagamentos ou dão calotes;
Um terço dessa galera mudou de emprego ano passado; atualmente, um quinto disse estar procurando novas oportunidades;
Criativos citam como o mais importante para sua realização profissional: fazer a diferença (22%); autodesenvolvimento (19%); ter tempo fora do trabalho (18%). O que é menos importante? Ganhar dinheiro suficiente (16%), ter oportunidades de sucesso (13%), trabalhar entre os melhores (9%) e reconhecimento (2%);
Talvez por isso, 65% dessas pessoas tenham passado por burnout; 57% até reconhecem que dizer não e colocar limites é a característica mais subvalorizada;
Falando nisso, 40% dos criadores de conteúdo sentem que ganham menos do que deveriam, e um quarto deles diz que tem dificuldades em convencer clientes a lhe pagarem por suas habilidades.
Curioso, não? Também notei que o WeTransfer hospedou o relatório no Google Drive, o que só prova que realmente não tá fácil pra ninguém.
Mas voltando ao assunto:
Na adolescência, eu também tinha uma outra fantasia: a de que, ao descer do ônibus sem destino certo, eu poderia me reinventar. Deixar de ser a menina tímida que não sabia fazer muitos amigos. Fingir que não trazia na bagagem um ou outro trauma que manchava minha curta existência. Pagar de popular e estilosa.
Depois dos 30, já recomecei vezes suficientes para entender que ninguém nasce de novo só porque troca de emprego, endereço, namorado ou roupa. Na primeira ocasião social, todo mundo nota que você não sabe dançar. Na primeira fala em público, geral consegue ver sua mão tremendo.
O que existe é evolução pessoal e a forma como você se identifica a partir do seu trabalho, da sua faculdade, do seu status de relacionamento. Essas coisas ganham pesos e valores diferentes pra gente ao longo da vida, o que é absolutamente natural, mas ao mesmo tempo assustador se despir de qualquer predicado que imaginamos nos definir.
Isso é especialmente verdade quando se faz algo minimamente criativo ou ligado ao setor da cultura e entretenimento, quando todos imaginam que trabalhar com o que se gosta sequer chega a ser desgastante ou cansativo. Aquela velha história do “trabalhe com o que você e não precisará trabalhar nenhum dia da sua vida”, quando na verdade é “trabalhe com o que você ama e você nunca mais amará nada na vida”.
Repensar o que o trabalho significa pra mim e o lugar que ele ocupa tem sido um misto de empolgante e aterrorizante. Tem quase 10 anos que eu não mudo assinatura de e-mail, cartão de visitas, currículo, sei lá qual é a senha do meu LinkedIn. Comecei a buscar freelas, a sentir a temperatura do mundo lá fora, ainda tentando entender onde me encaixar com a vida que tenho agora, com os objetivos que tenho no momento.
Por um breve período, cheguei a considerar fazer algo completamente diferente ou capitalizando um hobby que já tenho. Mas depois entendi que caía na mesma tentação de antes, de misturar paixão e ganha-pão, porém agora ainda tendo que começar do zero em uma fase da vida em que a realidade se impõe e as responsabilidades são muito palpáveis.
A verdade é que eu sou jornalista e amo o que faço. O que eu não amo é trabalhar 16 horas por dia. Num cenário de tanta incerteza financeira, a gente se desdobra nas funções pra conseguir um mínimo de qualidade de vida e ainda agradece que não tá na fila do seguro desemprego. Esse é um cenário cruel e insustentável, especialmente considerando que muitos de nós sequer tem um plano de saúde pra cuidar dos efeitos colaterais desse desgaste.
Poder dizer “chega, deu pra mim” é um grande alívio. Não deixa de ser uma despedida das expectativas que a gente cria pra si. Eu achava que, com 13 anos de profissão, poderia estar colhendo os frutos do que plantei até aqui e não apenas tentando sobreviver ao fim do dia. Aceitar a realidade dos fatos é dolorido, mas quanto antes se faz isso, tão logo é possível começar o processo de cura e de retorno pra si mesmo. Se tem um desvio de rota que é particularmente danoso é aquele que nos leva pra longe de quem somos.
Um brinde aos recomeços. E ao Brasil que começa a renascer, apesar de tudo.
Um bônus:
As melhores comédias de local de trabalho na TV gringa, segundo eu mesma:
Parks & Recreation
The Office
Brooklyn 99
30 Rock
Ted Lasso
Tem várias que eu nunca vi inteiras - Scrubs, Newsradio, Cheers, Wings… E quais as suas séries sobre ambientes de trabalho favoritas?