Ganhei uma nova cicatriz.
Ela é oval, em tons de rosa e marrom contrastando com aquele trecho do antebraço que nunca pega sol. Quem vê, pergunta: “o que houve aí?” E eu conto do momento em que esbarrei no filtro de café com água escaldante e o joguei na minha direção, sem querer. “Mas vai marcar, né?”. Vai.
Não me importo com as marcas, elas contam uma história. Essa queimadura do café, por exemplo, é um lembrete constante, uma tatuagem. É o sinal de “PARE” do meu corpo, quase tão vermelho quanto.
No dia em que me queimei, eu já havia furado três sinais amarelos. Havia ignorado a sensação de que precisava parar e descansar um pouco. Passei por cima dos meus próprios instintos insistindo em fazer mais, por mim mesma e pelos outros. Estava a mil por hora desde as 6h da manhã, numa Autobahn que só tem dois fins possíveis: ou você para por conta própria, ou a estrada para você.
Ano passado, vi o Kraftwerk ao vivo, um grupo pioneiro em muitas coisas, uma delas em trazer o debate da relação do homem com a máquina para a esfera da música. Quando começa “Autobahn” no show, você se sente viajando por uma estrada retrô - os visuais no telão remetem àquele “futuro do passado” imaginado pelos primeiros computadores e efeitos especiais.
Como não falo alemão, um dia procurei do que Ralf Hütter fala. E ele descreve exatamente a paisagem dos visuais, cantando um dia ensolarado e um vale à frente. Mas “nós dirigimos, dirigimos, dirigimos na rodovia”, então a descrição passa a ser menos eloquente. “A estrada é uma faixa cinza/Listras brancas, borda verde”. Perde a singularidade.
Talvez falte a Hütter a malemolência de uma Avenida Brasil pra chamar de sua. De ter um Mengão Fogos com escudo do Botafogo no letreiro, de outdoors vendendo de comida alemã (o melhor croquete do mundo a 5 km!) a roupa íntima. Talvez seja uma reflexão minimalista bem elaborada: se todos os dias ensolarados são iguais, todas as estradas também são.
Na hora que a água fervendo bateu no meu braço, doeu, claro. Minha sogra, que chegava no portão lá fora, achou que eu tinha visto uma barata pelo meu grito de espanto. Antes fosse. Porque não basta insistir em estar acima da velocidade que nosso corpo permite, a gente se choca quando ele de fato reclama.
É bem provável que a pele se regenere quase totalmente naquela área. Já deu bolha, já mudou de cor, tudo bem azeitado com pomada e proteção solar. Mas a sombra fica. Às vezes, só a sombra já é o suficiente.
Minha última cicatriz antes dessa foi no joelho. Estava com uns 6 meses de gravidez e tropecei em um buraco na rua. A barriga muda o centro de gravidade do corpo e lá fui eu catando cavaco pela calçada. Parece que nessa hora algo de instintivo acontece e, muito rapidamente, botei o joelho na frente. Deu certo. Estava quase em casa, então voltei mancando, com sangue pingando perna abaixo. Limpei, fui pro hospital, a plantonista da obstetrícia me tranquilizou depois do ultrassom: quase sempre o bebê fica bem, é a gente que leva a pior. “Cuide de você”. Me ensinou a limpar o machucado com muita água e sabão pra não infeccionar.
Infeccionou. Voltei ao hospital, lá estava a mesma médica. Me deu os remédios e o puxão de orelha. “Vai ficar a marca no joelho, tá?”. Já imaginava. No parto, ela também apareceu, já que fui pra mesma maternidade e fiquei quase três dias esperando as contrações começarem em um processo longo de vai-não-vai que testou a paciência de todo mundo. Flora veio, a mesma doutora também. Ela me reconheceu pela cicatriz primeiro.
Hoje é meio imperceptível, mas há um enrugado que se acentua quando eu fico com a perna esticada e que só eu sei a história - daquele dia em que eu voltava pra casa a pé, recebi uma demanda de trabalho no celular e fiquei ansiosa o suficiente pra me fazer acelerar o passo na Rua Mosela, a Autobahn da minha vida (só que com muito mais buracos).
Tenho revisitado essas marcas porque compramos no sebo um livro que se chama “A Cicatriz” para a Florinha. É uma história sobre entender que os pontos e arranhões depois ajudam a contar a história da nossa história.
Explico que aquele livro, por já ter sido de outra criança e morado em outra casa, tem várias pequenas cicatrizes. Mostro algumas das minhas pra ela, inclusive uma que temos igual: a marquinha da vacina BCG. Revelo os cortes feitos brincando no quintal, principalmente com galhos de árvores, que eu adorava catar para construir coisas e imaginar, de batuta de maestrina a câmbio de marcha do meu carro possante. Nunca quebrei nenhum osso, algo que sempre atribuí à minha criação superprotetora - considerando o quanto eu sou estabanada naturalmente.
Foi quando me dei conta que a maioria dos adultos parou de colecionar cicatrizes há muito tempo. As aventuras começam a rarear e, quando notamos, passamos a nos acidentar como reflexo de uma vida no piloto-automático. São queimaduras de cozinha e cortes de papel do escritório, nenhuma de cair do skate ou patins. São outros tempos, outras aventuras - agora a gente gamifica quantos dias consegue não surtar no trabalho, passar numa rua deserta sem ter o telefone parcelado em 12x levado numa bicicleta, esse tipo de coisa. Pequenas vitórias.
Me pego olhando para a mais nova cicatriz da coleção. A pele ainda frágil e enrugada, mas já saudável. De certa forma, não quero que ela vá embora. Temos a ilusão de que paramos de cair porque ficamos bons em andar. Talvez até seja. Mas é possível que precisemos voltar a cair para lembrar de andar, e não correr. Do contrário, como saber onde estamos e para onde vamos?
💭 Imagina mais
📹 Preciso admitir que não sou grande fã do Kraftwerk - entendo a importância, só que “uhh que vontade de ouvir um Modern Lovezinho hoje” não é o tipo de coisa que você vai me ouvir falar, e tudo bem. Mas recomendo essa gravação amadora, porém bem decente, de um show de 2023 com o quarteto se apresentando em praça pública na sua Alemanha natal. A fachada de um prédio vira o playground do grupo, com todas as projeções (que representam uns 50% da graça do show, convenhamos) ampliadas nas paredes. Gosto bastante dessas viagens visuais em shows.
🪘 Outro gênero musical com que eu tenho certa resistência é o reggae - acho que cresci vendo bandas de brancos de dread demais, nas festas de motociclistas da minha cidade natal. Mas tem uma banda venezuelana que eu venho amando ouvir! Se chama Rawayana e vou deixar aqui só um gostinho do feat deles com a também querida Monsieur Periné, que vira uma verdadeira festa.
🛹 “Si en el camino faltan colores, estoy seguro vendrán tiempos mejores”, canta Caloncho. Esse artista mexicano é um poço de positividade. Suas músicas são dançantes e divertidas, e muitas de suas letras têm um aspecto solar e de leveza que me inspiram muito. Essa é a nova, onde ele aparece curiosamente andando de skate - achei que combinava bem com a vibe do texto de hoje.
🎺 Eu estou apaixonada pelo projeto Sindicato del Ritmo. É uma big band de jazz cubano, que conta com engenheiros de som potentes como o do álbum icônico do Buena Vista Social Club. Eles estão lançando faixa a faixa de um projeto lindo, que une os músicos a cantores populares latinos, como o próprio Caloncho ali de cima; mas também a bandas completas, como a excelente Café Tacvba. Musicalmente já é uma porrada, mas os visuais deixam tudo mais estonteante.
🌵 Jorge Drexler voltou! Na verdade, encerrando o ciclo de seu último disco, “Tinta y Tiempo”. Essa música é mais soturna, por isso foi deixada de fora do álbum. Mas “Derrumbe” é exatamente o que se propõe: uma canção sobre demolir para reconstruir. O clipe gravado em Joshua Tree tá bem bonito, mas peca por não ter nosso Jorgezito.
Obrigada por ler! Até a próxima ✨
Amei o texto! Também coleciono cicatrizes. A mais recente por acaso é no joelho também, de algum dia de dezembro e não foi causada por acidente. Eu sentei num bar e senti um comichão no joelho, talvez uma picada de bicho, só sei que passei a noite coçando, coçando. Cheguei em casa e vi que tinha arrancado minha própria pele. Agora ficou uma cicatriz arroxeada de 2cm (esqueci do protetor alguns dias) na perna em que eu não tinha marca nenhuma 🙃
os adultos param de colecionar cicatrizes físicas e passam a juntar cicatrizes emocionais, bem mais dolorosas.