A Jessie Ware me perguntou quanto tempo levou para que eu deixasse de me sentir uma fraude como jornalista. Conversávamos por Zoom, ela em Londres e eu em Petrópolis, ambas empolgadas com o remix que ela estava lançando com a dona da música eletrônica toda, Róisín Murphy. Jessie é uma artista em alta nos últimos anos. Ela já está no quinto disco - o ótimo That! Feels good! -, mas nunca escondeu que, por boa parte de seus mais de 10 anos como cantora, se sentia uma impostora. Que tinha medo de se reconhecer como artista, de que isso a tornasse vulnerável.
Quando saiu What’s Your Pleasure?, a coisa mudou de figura. Esse disco virou a chave pra muita gente, inclusive a própria Jessie. Furou bolhas, elevou seu nome a novos patamares de reconhecimento e serviu de trilha sonora pra muitos dançarem na sala de casa no auge da pandemia. Foi só aí, quando protagonizou um álbum com forte conceito musical e visual, que Jessie Ware passou a se chamar de artista.
Antes disso, Jessie Ware tinha lançado três álbuns.
Antes disso, Jessie Ware tinha fãs como Prince e Kylie Minogue.
Antes disso, Jessie Ware não ousava se chamar de artista - um predicado tão amplamente usado na indústria da música que ninguém pensa duas vezes antes de colocá-lo ao lado do nome de todos os cantores e músicos.
Perguntei pra Jessie o que mudou para que finalmente se aceitasse como artista e ela me disse que foi justamente o quarto álbum. Naquela época, Ware deu um salto em direção à disco e à eletrônica, mais fortemente do que nunca - antes, o seu trabalho era muito associado ao R&B e soul, seguindo uma longa tradição de ótimas cantoras inglesas nesses gêneros. Ela cansou de se restringir musicalmente e deu no que deu.
Não estou acostumada a receber perguntas nas entrevistas, em geral eu sou a pessoa elaborando, tentando guiar o papo, costurando a conversa. Quem vê de longe, deve achar que falar com gente famosa é legal - e realmente é, mas dá trabalho. Quando comecei a fazer isso profissionalmente, era tudo por telefone, uma conversa rápida (e com ruídos) em que um cantor ou integrante de banda falava apenas com você. Chamam isso de exclusiva, e não deixa de ser. Os blocos até hoje costumam ser de 15 minutos, raramente mais, de vez em quando menos, só que agora por chamada de vídeo. Com Jessie, tive 10 minutos. Pra uma pessoa introvertida como eu, esse é o tempo que eu costumo levar pra quebrar o gelo. Nesse contexto, falamos de filhos por um minuto, depois mãos à obra.
Eu não respondo perguntas, porque não sou a pessoa interessante naquele contexto. Porque não há tempo para amenidades além de “como vai você?”. Às vezes, me perguntam onde eu fico no Brasil. Às vezes, me perguntam se eu gostei do disco que estão promovendo. Esse é o lado mecânico das entrevistas, precisam cumprir um certo script. Alguns dias antes do papo com a Jessie, recebi o remix novo, o press release, a pauta estava clara. De vez em quando, rola também o oposto: uma lista de assuntos que não devem ser discutidos. Vida pessoal, questões políticas, parentes famosos, projetos paralelos costumam entrar aí, com risco de encerrarem a chamada sem aviso prévio. Por fim, a equipe da gravadora e do próprio artista também entram na sala do Zoom, ficando às vezes cinco pessoas ouvindo o papo. Eles enviam o tempo restante no chat, pra você calcular quantas perguntas ainda consegue fazer. “Nath, faltam 2 minutos”. Ok, ok.
Aos poucos, fui ficando boa nisso. Costumo ser a pessoa que encerra as conversas no horário cravado, sem atrasar o cronograma para a próxima entrevista. Já estive dos dois lados, também na assessoria de imprensa, e sei que dependendo do artista, entre um papo e outro, rola troca de figurino e maquiagem. E é bem possível que nessa bateria de conversas, só mesmo nas pausas é que o entrevistado consegue dar um pulinho no banheiro. No caso da Jessie Ware, ela disse que iria colocar roupa na máquina de lavar e arrumar o quarto. Esse é o bônus da entrevista por Zoom. Uma intimidade, mesmo que superficial, brota ali. Por alguns minutos, essas pessoas entram na minha casa, passam o olho pelas minhas estantes ao fundo, cumprimentam minha filha, que insiste em invadir muitas dessas conversas (ultimamente, Flora só tenta falar com ganhadores do Grammy e do Oscar, pois: exigente. Sim, ela chama todos de tios).
Mas aí Jessie Ware me pergunta, enquanto trança o próprio cabelo: há quanto tempo você é jornalista? E quando deixou de se sentir uma fraude? Disse pra ela que é bem possível que eu não tenha superado isso, que ainda me sinto insegura boa parte do tempo, embora esteja nessa há 14 anos. Jessie me garantiu: é normal. Todo mundo finge que sabe o que está fazendo até se sentir, de fato, apto para aquele papel.
Comecei no jornalismo no primeiro período da faculdade, então eu literalmente aprendi fazendo. Tenho pelo menos duas gafes na profissão que me enchem de vergonha até hoje. Além de que uma vez, no meio da aula de redação, o professor usou uma matéria minha, publicada no maior jornal da cidade, como exemplo de como não fazer uma matéria. Mesmo sem explanar pra turma de quem era a assinatura, é o tipo de coisa que a gente não esquece. Mesmo que eu estivesse no terceiro período e tentasse fazer uma matéria complexa sobre a Secretaria de Fazenda de uma cidade onde eu morava há apenas um ano, sem qualquer orientação dos editores. É o tipo de coisa que te faz questionar, eternamente, se “leva jeito” pra coisa.
Hoje consigo olhar pra Nathália que cometeu esses erros e sinto compaixão por ela. Entendo que aquela menina ainda era inexperiente, mas agora, já mais escaldada na profissão, me pergunto se e quando essa chave vai virar pra mim. Talvez, com a passagem do tempo, venha também um cinismo, uma autocrítica cada vez mais pungente. A comparação com os colegas de profissão é tão fácil de ser feita - o LinkedIn tá logo ali - que se torna quase irresistível.
Mas Jessie é certeira: talvez tenha um componente de gênero aí. Na mania de nós, mulheres, nos diminuirmos, nos acharmos menos dignas de ocupar certos espaços. De não acharmos que podemos sim, fazer as perguntas e comandar as conversas. Talvez por isso, antes de cada entrevista, eu ainda tremo, suo frio, tenho dor de barriga. Não importa se o entrevistado é “figurinha repetida”. Não importa se é pessoalmente ou online. Se é alguém que eu admiro ou alguém que eu nem sei quem é inicialmente. Eu digo pra mim mesma que é sintoma de me importar demais. Sinal de que eu me dedico tanto às entrevistas, que sei o quanto está em jogo e me preocupo em dar o meu melhor. Embora tudo isso seja verdade, também é real o medo de não ser boa o suficiente.
Tenho uma pasta bagunçada, mas que já conta com 102 arquivos de entrevistas - só essas com músicos, só as que não se perderam com o tempo. Tem artista novo que ninguém ouviu falar. Tem lendas e personalidades icônicas. Não sei quantos minutos isso daria, sou de humanas. Sei que são muitas palavras transcritas ali. Mas talvez por serem palavras de outros, não me sinto dona delas. Daí vem a sensação de não abraçar totalmente o rótulo de jornalista e, certamente, o de escritora.
Escrever a Imagina Só é algo que eu faço mais do que parece - antes desse texto chegar na sua caixa de entrada, eu ensaiei outros dois que talvez envie futuramente, talvez não. Escrever se tornou o meu momento de reclusão, cada vez mais raros numa casa com criança pequena (Jessie Ware sabe do que eu tô falando, ela tem três). Escrevo, publico, centenas de vocês leem a cada edição. Ainda assim, uso a régua de outras newsletters, de autores de livros de sucesso, para medir o que faço aqui.
Já comentei anteriormente que escrever, pra mim, é penoso. Cansativo, excruciante em alguns momentos. As palavras me escapam, fogem de mim. Ainda assim, continuo as enfileirando na página. Sou teimosa, a sensação de que talvez eu não consiga executar algo só me faz desejá-lo mais.
Escrever as palavras de outrem é, de certa forma, mais leve. Exige compromisso e responsabilidade, porém não há o peso da autoria. Quando o cara do Blur me pergunta o motivo de eles não estarem com show marcado no Brasil, eu posso publicar isso e mostrar que nem a própria banda entende a dificuldade em confirmar algo que certamente será um enorme sucesso. Meu trabalho está feito, mesmo se eu nem cheguei a propor a pergunta.
Quando sento na cadeira da Imagina Só, o peso é outro. É um espaço que só funciona se eu me apropriar dele. Por isso, mesmo que seja desconfortável, continuo aqui. Escrever nunca foi fácil pra mim, e imagino que nunca será.
Tem um texto do Bukowski que eu faço questão de ignorar. Ele diz que para ser um escritor, é preciso que a escrita irrompa de você. Sem rodeios, sem ficar horas catando palavras. Entendo o que o velho Hank quer dizer. O homem sabia o que queria falar e tinha uma relação de co-dependência com a escrita, uma existência romântica e boêmia com a máquina de escrever. No seu poema “Jogue o dado”, Charles escreve que “Se você vai tentar, vá com tudo / Senão, nem comece”. Na sua lápide, jaz apenas a inscrição “Don’t try”.
Talvez boa parte da literatura que amamos surja exatamente assim. Mas nem toda escrita é literária, sequer utilitária. Escrever é exercitar músculos, dobrar articulações, tocar teclas pelo mero prazer de ver a tinta se derramar no papel. Não precisa haver motivo, razão, circunstância. Quando ele diz “se for pra ficar editando, nem comece a escrever” - estou parafraseando, entenda - dá a noção de que as palavras que chegam até nós assim nascem, perfeitas, alinhadas, em ótimas companhias de outras palavras igualmente perfeitas e alinhadas. Quando se diz “se você tiver sido escolhido”, dá a entender que apenas os iluminados podem escrever.
Mas não se engane. Escrever é braçal, é brutal. É povoar páginas com fatos e pessoas - reais ou imaginárias -, depois cortar, colar, polir, rearrumar. Só sei fazer se for assim, na base do muque, de se manter em movimento, de fazer com que os dedinhos não parem de tamborilar nas teclas. É na base da teimosia mesmo.
Talvez meu objetivo seja fazer isso por tempo suficiente para que eu me sinta, enfim, digna de ocupar essas linhas. Me espalhar por elas, me deixar derramar por cada quebra de parágrafo, cada pontuação excessiva - tal qual os álbuns da Jessie Ware. Eu já vivo das minhas palavras. Mas imagina só se eu finalmente aceito ser escritora? Esse dia ainda vai chegar.
O papo com a Jessie Ware está inteiro no Tenho Mais Discos Que Amigos!. Falamos sobre as chances de uma volta ao Brasil, sobre esse remix novo, sobre música chique.
A
- minha colega substacker de Petrópolis - fez uma ótima edição da Marginália (como sempre), contando como lida com as palavras e com o processo de aceitação da própria escrita. Tem muito a ver com o que falei aqui.A
escreve bem demais sobre a gente se reconectar com versões passadas de nós mesmas.A
escreve, eu dou like, é simples assim. Ando muito atrasada nas leituras, mas essa edição sobre aceitar a passagem do tempo tá especial.A
transforma em poesia singela suas preocupações constantes. Me identifiquei? Só se for muito.Seleção de links bem cheia de mulheres, porque com todo respeito aos homens, até tenho amigos que são, mas essa Barbie apoia a escrita de autoras maravilhosas que povoam essa plataforma sim.
Seu texto me encontrou em cheio. Estou um pouco mais no início da minha carreira, e me sinto muito insegura de cada entrega. Fico calculando o quanto será necessário eu fazer a mais, estudar a mais para alcançar esta auto-confiança profissional que ainda não chegou.
Me reconhecer um pouco no seu texto apaziguou um pouco das sensações por aqui.
Obrigada!
Sou muito teu fã, cara, pqp! Que porrada de texto! Você sempre foi uma profissional talentosíssima, agora cada vez mais. Quando eu crescer quero ser assim! Quando você lançar o livro com as entrevistas (ou outro qualquer que você queira) estarei lá na fila pra pegar o autógrafo e ainda falar "minha amiga, conheci quando não era famosa."