Não sou uma pessoa saudosista, mas ando pensando muito sobre aquela época da vida em que a gente se descobre. Quando passa a explorar os próprios gostos e desgostos, sabe? Se liberta da bagagem familiar herdada e sai para ver o que há lá fora. Quando foi a última vez que você sentiu o prazer de encontrar uma nova paixão?
Pra muita gente, isso é descobrir o próprio caminho espiritual. Para outros, é deixar de frequentar aquele curso que era um desejo de vaidade dos próprios pais. Na minha casa, havia a expectativa de que todos seguissem a mesma fé, se encaixassem em certos padrões sociais e ficassem longe dos “desvios” desse caminho. Família mineira, muito religiosa, cidade pequena, aquela coisa.
Eu me lembro quando virou a chave: não preciso gostar de tudo que ouço em casa, no meu fone de ouvido mando eu. Posso explorar quem serei daqui em diante. Selecionar, estabelecer critérios, caçar os meus próprios tons e sons. Isso coincidiu com a chegada do primeiro computador e internet. Eu tinha 13 anos e por isso decidi sumariamente que não gostaria de Gal Costa (ah, a adolescência). Que iria rejeitar os gostos recebidos a colheradas açucaradas da minha mãe. Caí na comunidade Discografias do Orkut e o resto é história.
Já naquela época eu tinha noção de que estava forjando minha própria personalidade, um kilobyte por vez. Comprei aquele livro “1001 discos para ouvir antes de morrer”, buscava listas de filmes imperdíveis, clássicos da literatura que todos pareciam conhecer, menos eu. Era um FOMO diferente. Não tanto pela pressão social, era mais pela gostosa sensação de que havia um mundo todo lá fora esperando para ser descoberto. Agora as bases já estão lá, mas ainda há tantas preciosidades a serem encontradas que eu me recuso a aceitar que meu gosto está formado. Fecha a conta, passa a régua, download de personalidade completo?
Digo que não sou saudosista porque tenho plena consciência que a velocidade de conexão naquela época era horrenda. Não tenho a menor nostalgia de esperar pra conectar após meia noite ou depois das 14h nos finais de semana. Porém, de certa forma, havia uma empolgação que não temos mais hoje. Não apenas porque os gostos se tornam mais previsíveis, mas porque não costumamos mais encontrar tesouros perdidos pelo caminho.
Antes, a gente desbravava mares desconhecidos do Kazaa e do Emule. Procurava aquele sucesso do Oasis e às vezes vinha mesmo Don’t Look Back in Anger; mas às vezes vinha The Verve, embora o nome do arquivo dissesse outra coisa. Mas né, Sally can wait. Como demorou meia hora pra baixar aquele MP3, você dá play, joga um verso da letra no Google e pronto, descobriu uma banda nova. Havia o mistério da caça, uma espécie de mapa dos mares ainda quentes da internet.
Eu prefiro agora, não nego. É reconfortante saber que posso ouvir a música que quiser, assistir o que der na telha, baixar um livro inteiro em segundos. Não banalizo a acessibilidade que os apps proporcionam. Sequer acho que não descobrimos nada novo. Só que agora é mais passivo. O algoritmo seleciona uma música que talvez você goste, você consente com o mero ato de não pular a faixa. Talvez salve numa playlist. Vida que segue.
Há alguns anos, uma pesquisa da Deezer cantou a bola: a gente passa pelo auge das descobertas aos 24 anos, mas atinge a “paralisia musical” aos 30. Os entrevistados relataram a sensação de estarem sobrecarregados com o número de escolhas oferecidas; muitos disseram que nem têm tempo para música nova por conta do trabalho; uma outra fatia alegou que agora têm filhos e outras responsabilidades para dar conta. E bem, estão certos. Claro que não há nada de errado em ouvir as músicas que nos dão a sensação de conforto, de já haver estado ali antes. Cantar junto, então, é um potente remédio contra o baixo-astral.
O que me leva de volta a sempre buscar pelo novo é o fascínio da descoberta. Aquele momento eureka, de pensar “como eu não sabia disso antes???”, de querer contar pros amigos, de separar a vida entre o antes e depois daquele encontro furtivo com algo que caiu como uma luva pra… você.
Tive alguns pontos de virada. Primeiro para o pop das boy bands e girl groups, depois para o indie rock do início dos anos 2000, seguido por um mergulho na música brasileira. Quando cheguei nessa fase, os pen drives já tinham virado HDs externos, que trocava com amigos repletos de discografias completas. Gil, Chico, Caetano e até Gal, porque o mundo dá voltas (ainda bem). O choro pra sambar de Jacob do Bandolim, o samba pra chorar de Cartola, estava tudo ali.
É curioso notar o quanto desses bens culturais vão formando nossa personalidade, como uma espécie de manopla do Thanos. Cada joia, um poder diferente, uma camada nova de entendimento sobre quem somos e como chegamos até aqui. E aí é que a gente volta às raízes e entende que é formado tanto pelo que descobriu “sozinho” quanto pelo que já estava lá antes de aprendermos a decidir. Dá pra ser indie e ouvir sertanejo de raiz, eu me dei conta.
Venho pensando muito em Gal. Talvez fosse inevitável, por trabalhar com música, mas também pelo luto recente, o bafafá com a viúva, o disco recém-lançado da Filipe Catto. Me pergunto se iríamos nos conectar, tivesse eu deixado de ser tão resistente. Mas sei que não. A gente não acha Gal assim, não dá em árvore. Ela é quem nos encontra no tempo certo, a todo vapor, aí então é fulminante. Fa-tal.
Sigo descobrindo. Há uns anos, comecei um mergulho nos sons latinos que continua até hoje e não vai chegar ao fim tão cedo. Troquei os mesmos autores que lia sempre por novas vozes, com referências catadas de amigos, newsletters, recomendações confiáveis. Gastei tempo e dinheiro com coisas que não casaram tão bem comigo, mas a sensação de sair do casulo, depois de muito tempo, é um prazer por si só.
O novo sempre vem, mas só quando a gente deixa. Há períodos de hibernar em volta de si e proteger aquilo que nos trouxe até aqui. Mas viver é aceitar os ciclos. Entender que estamos constantemente nos expandindo e retraindo, conforme a dança da vida. Desafios surgem a cada nova etapa e a gente vai abrindo mão de algumas coisas para abarcar outras possibilidades e versões de nós mesmos. Uma promoção, aquela faculdade que você sempre quis, a parentalidade, um mergulho criativo há muito negado.
São outras formas de descoberta para os piratas que, há anos, navegavam os caminhos tortuosos da internet em busca de tesouros. Por sorte, eles agora fazem parte de quem nós somos, tudo em one piece - e não há nada que mude isso.
💭 Imagina Mais:
💿 Pra não perder de vista as músicas latinas que venho “descobrindo”, criei uma playlist - primeiro no Spotify e agora na Deezer -, só com coisas menos óbvias (pra mim, pelo menos). Quando dou play, sempre me encanto com o quão rica é a sonoridade dos nossos vizinhos. E olha que é só a ponta do iceberg.
🎤 Entrevista nova no ar: falei com a Emily Haines, do Metric, sobre ficar longe do Brasil por 15 anos, tretas com gravadoras, 20 anos de carreira e dançar em direção ao abismo. O disco novo tá ótimo.
🎟️ Evento presencial no Rio! Estarei com meu colega de microfone, Rafael Teixeira, gravando um episódio do podcast Tenho Mais Discos Que Amigos! no dia 19/10, às 17h, no Teatro Nelson Rodrigues, na Caixa Cultural. O evento faz parte do Festival Papo de Música e receberemos ninguém menos que Mahmundi e Ana Frango Elétrico pra falar sobre os desafios atuais da música brasileira. A entrada é gratuita, só chegar!
Eu vivo pela dopamina da descoberta, por esse tesão imenso de adicionar uma música/artista/livro/série/ideia/jogo/filosofia/receita/informação-aleatória à minha coleção pessoal, o tal do repertório. Ah, que delícia.
Que texto ótimo. Recentemente, entrei um pouco em uma onda saudosista, principalmente depois de assistir Beckham, na Netflix. E não era saudade da época em si, mas da sensação, do frescor de uma vida inteira pela frente. A saudade existe, mas hoje é bem melhor. Não tem nem comparação.