Gosto muito de filme que mostra a vida de gente privilegiada, não nego. São histórias sobre relações humanas, verborrágicas, sem grandes reviravoltas na trama. Nada de muito grave acontece, os conflitos são pequenos - nenhum desastre, nenhuma ameaça à integridade física de ninguém. São filmes sobre a vida se desenrolando, a cotidianidade das tarefas mais banais.
Algo acontece, claro. Uma mudança de vida, de cidade, de emprego, de estado civil. Um ponto de virada em que alguém repensa a própria existência e sai da zona de conforto. Nicole Holofcener faz isso muito bem. Dia desses vi o mais recente dela, You Hurt My Feelings, e fui puxada de volta para essa sensação de familiaridade que seus filmes carregam, muito embora eles retratem um mundo tão alheio ao nosso. As histórias têm um ritmo próprio, de diálogo, de intensidade e leveza que te deixam desconfortável apenas o suficiente para se importar com aquele bando de gente rica.
O grande dilema do filme novo é a esposa que descobre que o marido não gosta de um livro que ela escreveu, uma longa questão filosófica se desenrola ali. Dá pra ser casado com alguém que você não admira profissionalmente? O maior problema na vida do cara é que ele tá envelhecendo e não sabe se deve fazer uma plástica. Entende? Não que não importe o dilema dos dois. Pelo contrário: serve de suspensão da realidade em que precisamos fazer escolhas com consequências mais palpáveis. Nicole Holofcener literalmente tem um filme inteiro sobre a desigualdade social em meio a um grupo de amigos. No caso, amigos ricaços e uma pobretona que é, pasmem, empregada doméstica.
Não serve de régua pra medir os dramas na vida de ninguém. O brasileiro médio, pelo menos, não tá preparado pra esse mundo. É uma realidade paralela, de gente que vai correr no Central Park sem medo de ser assaltado, que vai de bicicleta pro trabalho sem suar, que no fim do dia reclama de ter ficado meia hora na fila da nova cafeteria chique do bairro.
Eu não quero saber se essa vida é possível, muito menos realista. Se eu quiser encarar a realidade, abro o jornal (entregando idade aqui kkk). Eu não quero saber se a Monica mora num apartamento no Greenwich Village que o seu salário de cozinheira não daria conta de pagar. Eu quero entrar naquele mundo de Friends em que é possível imaginar uma vida num apartamento digno para jovens adultos, em que eles só precisem lidar com as dificuldades dos seus relacionamentos vazios. É pedir muito?
Falando em morar, eu poderia residir numa cozinha da Nancy Meyers. A casa inteira ali, na bancada, na pia, não me importo. Espero que os designers de set nos filmes dela sejam bem pagos, porque metade do que fica quando a história acaba é a personalidade dos espaços interiores. Até quando retrata uma vida mais simples, Nancy cria tão bem aqueles ambientes aconchegantes que você se sente em casa. Lembra do chalezinho de O Amor Não Tira Férias? Não tem um espaço desconfortável ali, não importa quantas vezes a Cameron Diaz role os olhos por não ter um closet.
Adoro os filmes da Nora Ephron pelo mesmo motivo. Não me entenda mal: Norinha passou por poucas e boas na vida pessoal, foi uma mulher pioneira - primeiro no jornalismo, depois no cinema. Não deve ter sido fácil. Mas quando você vê os dilemas nos seus protagonistas, pode simplesmente se aninhar naqueles sofás confortáveis e também flanar pelas ruas do Upper East Side, tomar um café com bagel no Zabar’s, se deixar levar pelas questões dos seus protagonistas. Uau, será que o viúvo vai se abrir para o amor? Será que os donos de livrarias concorrentes vão parar de se odiar? Será que os dois amigos vão arriscar dar um passo a mais e se pegar? Só o tempo - aquela 1h40 bem de leve - dirá.
Agora, delícia mesmo deve ser a vida do homem branco num filme do Woody Allen. Se esbaldar em uma cidade europeia e ficar entre a Marion Cotillard e a Rachel McAdams; a Scarlett Johansson e a Penélope Cruz. Ou então ser o Larry David em Tudo Pode Dar Certo, sabe? Vidão de aposentado, andando pra cima e pra baixo mal vestido e ainda conquistando o coração de belas donzelas, mesmo com 70 anos na cara e menos de 70 fios de cabelo na cabeça.
Aliás, Larry David é o rei dos homens privilegiados. Curb Your Enthusiasm é uma série que te pega pelo desconforto, pela vergonha alheia de se imaginar numa situação social espalhafatosa, totalmente causada pelo protagonista. Teoricamente, você sente pena do cara que vive metendo os pés pelas mãos. Mas a vida do sujeito é puro conforto. Os maiores problemas dele são as outras pessoas - e vez ou outra, ele tem até razão.
Larry criou aquela pequena sitcom chamada Seinfeld, conhecida por ser uma série “sobre nada”. Curiosamente, é uma história em que coisas muito mirabolantes acontecem, elas só não tem grandes consequências - pelo menos até o final, no caso dos protagonistas (RIP Susan). Estamos falando de pessoas que salvam baleias sem querer, que não conseguem dormir por causa do cachorro do vizinho, que fingem que têm profissões que não tem, que criam caso por conta de uma caneta, que encontram os menores motivos para terminar com uma garota. Os grandes vilões da história são um carteiro e o “Nazista da sopa” - o último deu tão certo que virou franquia de restaurante (de sopa, claro - era até bem boa antes de fechar).
Vida de gente rica que tem muito em jogo até tem seu charme. De quem foi a morte misteriosa no resort de luxo no Havaí? Quem fica com a empresa do patriarca da família? O atrativo é outro, é entrar num mundo tão distante que parece caricato. Já as histórias de gente comum, mas que tem uma vida confortável parecem alcançáveis, possíveis, verossímeis. É uma espiadela numa existência idealizada e numa realidade paralela onde nada fica fora do lugar - exceto um pequeno conflito que será resolvido até o final por pessoas com beleza acima da média e tempo de sobra.
É claro que uma dose de realismo vai bem. Sou super a favor de narrativas cruas, desafiadoras, que provocam sensações até quando não são agradáveis. Alguns dos filmes que eu mais amo vêm dessa escola. Mas há que se admitir que o escapismo é basicamente como a maioria de nós sobrevive a esse Brasil.
Estamos numa época em que a gente se delicia com a onda de histórias onde os ricos se dão mal, e que fique claro: eu também ri horrores com os milionários colocando os bofes pra fora em Triângulo da Tristeza, fiquei bem entretida com o jantar maldito de O Menu. Mas, por outro lado, esses dramas mais humanos mostram um lado gente como a gente que te faz sentir em casa. A única diferença é que o transporte público, quando existe, não é lotado. Os restaurantes têm serviço rápido. A escola das crianças é sempre boa, a questão é o tamanho da doação que será feita para a nova biblioteca que estão construindo.
Não é uma vontade de viver longe do conflito, é mais um respiro para além dos nossos dilemas pessoais - afinal, a maioria de nós tem algum nível de conforto e a própria cota de problemas que outras pessoas gostariam de ter. De alguma forma, imaginar uma vida menos precarizada possibilita ver além de questões estruturais ainda tão presentes, e tornar as histórias mais pessoais. O fato de que elas acontecem em lugares bonitos, bem iluminados e com pessoas atraentes é só um bônus.
A
escreveu, não faz muito tempo, sobre o nosso fascínio com ricos a partir da curiosidade gerada pelo sumiço do tal submarino. Ela reflete sobre nosso caso de amor e ódio com os 1% - ser contra os poderosos e ainda assim querer ser um deles. Me identifiquei, tanto que já fiz minha fezinha na Lotofácil da Independência - torçam por mim, não quero mais ter boletos.As crônicas de vida nômade do
têm me encantado, talvez por ter sonhado com o nomadismo em algum momento da vida pré-maternidade. Esse post sobre um show punk na Indonésia (mas não apenas só) foi especialmente divertido.Depois de dica da
, ouvi o 451 Mhz com uma entrevista inédita em áudio da Clarice Lispector com Marina Colasanti e Affonso Romano de Sant’Anna. Não sou grande leitora de Clarice, mas foi curioso ouvir sua voz, colocar um ritmo na sua fala, entender como funcionava seu raciocínio. A sensação que fica é de ser uma mosquinha ali naquele papo de compadres compartilhando uma coquinha gelada.Indo no caminho oposto desse post, devorei duas temporadas de Abbott Elementary, que já estava no radar há um tempão e teve um empurrãozinho do meu amigo André Felipe, aka
. Que delícia mergulhar na história desses professores que passam bons perrengues no dia-a-dia, mas que teimam em continuar tentando, resultando em uma história leve. Delicinha para descomprimir no fim do dia!Obrigada por ter lido até aqui. Até a próxima!
ah, que texto delicioso! muitas memórias desses filmes tranquilos em que nada grave acontece hahah eu ainda escrevi hoje mesmo sobre essa ânsia de assistir filmes buscando grandes debates, posicionamentos políticos e crítica social foda ®.
adoro uma família de bilionários brigando como adolescentes por um monopólio de mídia cheio de crítica importante? sim. mas ui que delícia acompanhar um pouquinho a vida de 6 brancos héteros em ny num apartamento bonito e bem localizado, né?
eu demorei anos para entender o valor dessas narrativas da banalidade. é o comfort food do entretenimento hehe
obrigada pelo link!
adorei essa edição.